Quando entrei na Casa de Armanda Passos senti-me imediatamente seduzida por aquele espaço repleto de telas alinhadas. Mais, senti-me de imediato afetada por aquelas figuras femininas ladeadas de animais a transbordar de cores. Uma afetação positiva, enérgica, cativante.
A artista parece ter afirmado em tempos ser uma colecionadora de telas. Felizmente! Desta forma, somos brindados com uma volumosa quantidade de quadros…E estes, que agora nos interpelam, são unicamente da década de 80! Vale-nos a generosidade da filha, Fabíola, que nos abriu as portas para este mundo do maravilhoso imaginado e pintado.
A casa Armanda Passos foi projetada pelo Arquiteto Álvaro Siza, tem os seus traços, a brancura iluminada pela luz jorrante, vibrante que, inunda as salas de pé alto, agora forradas com as suas (dela) telas, com a sua força criadora, consigo! Talvez por isso, o arquiteto tenha escrito “Enquanto viveu – a casa era a Armanda. E assim continuará.”
E, de facto, é muito mais que o conjunto dos quadros reunidos que se faz presente. É o lugar-espaço da criadora como um todo, parte intimidade parte pública, espaço de vivências anteriores, de memórias, estilhaços de ser que emerge nos escritos gravados no granito, nas frases a negro expostas, nas telas e no jardim, no prado regado com as suas mãos…
Nos quadros de Armanda, o substrato são os animais, sobretudo os répteis e os animais marinhos qual arquétipo fundado em narrativas mitológicas ou a lembrar-nos as cosmogonias órficas. No princípio antes do verbo a água! O meu pensamento teima em regressar aos milésios e à mesma busca incessante, do mistério da origem do Mundo, repetida em Proust com a «aprendizagem dos signos», aprendizagem complexa que exige reconversões e desvios sucessivos do olhar, da inteligência e da imaginação.
Talvez Armanda tivesse escutado o “coro das Aves” de Aristófanes e, intuitivamente, tivesse criado um reino de bem-aventurados. Daí, a simplicidade da mão que vinha do ar, baloiçava e criava. Uma simplicidade arrebatadora, que lhe vinha das entranhas, conduzia a sua mão, os braços, o seu corpo-pincel para enformar um universo perdido com todas as cores que uma palete pode conter.
São pássaros coloridos, répteis baloiçantes, sapos gigantes, lagartos esvoaçantes, gaivotas falantes, peixes tropicais…todo um manancial de animais entrelaçados, agarrados, vigilantes de mulheres, seres arredondados com garras nos pés e dedos disformes, por vezes obliterados. Há ainda rainhas carregadas por elefantes, bailarinas opulentas e outros corpos a assemelharem-se a marionetas suspensas por animais. Todo um mundo onírico animado com o alento da pintora. Um admirável mundo, que nos faz demorar o olhar e nos encanta. Estou fascinada!
Só a intuição nos permite mergulhar na realidade para a apreender no seu fluir. Talvez por isso, tal como a natureza parece ter horror ao vazio, também a mente de Armanda perante a tela branca parecia expandir-se em múltiplas e coloridas formas, desdobrando um mundo a-vir exageradamente cromático, seres intemporais eternizados!
E olhando outro conjunto de telas parecem surgir baleias-cadeira, golfinhos viajantes, sapos-braços, morcegos vigilantes e assustadores e lagartos-cérebros! Seres de algures que Armanda Passos nos revelou e que compõem um Universo arquitepal que deixámos para trás! Figuras que nos devolvem à inocência, ao tempo das cosmogonias originais! Figuras sem dualismos nem racionalidades fraturantes, sem modelos nem convenções, sem escolas nem correntes. Doação pura, dádiva que uma vez mais nos oferece a possibilidade de uma experiência originária da realidade.
Com a luz e com a cor, surgem figuras indeterminadas, plenas de poderes vitais, forças em devir que nos cativam ao mesmo tempo que desconcertam pensamentos. Umas vezes parece que as mulheres se olham e, com o olhar, parecem falar. Em outras telas parece que são os animais que falam e as mulheres escutam! Mas, há diálogos nas telas, há diálogos entre as cores, entre mundos…entre nuances do que pode realmente estar figurado em cada gesto, em cada traço! E há vida!
Disseram já sobre o processo de pintar de Armanda que é uma forma de meditação. A própria artista afirmou “Frente à tela faço uma brecha no tempo, entro numa espécie de meditação, tento alcançar a plenitude.” (Armanda Passos – sessenta anos” Fundação Júlio Resende, 2004). Reitero, uma meditação criadora! Uma espécie de intuição imanente que fez do seu corpo habitáculo de Oráculo, qual pitonisa! Verdadeira escutadora de histórias ancestrais, comunicadora de um tempo pré-helénico, pré-racional em que homens e natureza viviam em comunhão, constituíam uma verdade redonda, a simbiose perfeita em que emergia o ser. O Ser que sempre encontrará caminhos para emergir, revelar-se, desvelar-se… A fonte da vida na sua clarividência, num jorro de luz….
Já a nomearam Armanda-noz (Eduarda Chiote), Armanda-pássaros (Lídia Jorge). Por mim, pode ser Armanda-Tartaruga voadora, prenha de ovos, de ar, de água; ovos inflamados por uma energia vital, energia criadora de “humanários” – como os nomeou Saramago – que, nas suas formas volumosas, esvoaçantes, quiçá numa dança inebriante, convidam-nos a regressar a esse tempo cosmológico de simbiose homem-natureza. Tempo perdido, tempo pela pintura trazido ao presente a lembrar-nos a nossa dívida ecológica.
Dever de memória a iluminar o caminho que se quer fazer para trás. Futuro antecipado! Armanda foi, sem dúvida, visionária e, ainda que não o afirmasse, com a sua arte poética respondeu às questões que a inquietaram “O que somos? Donde viemos?”. E agora, ante este festim da pintura, em que Armanda Passos nos trouxe as cores e as formas, cabe-nos a nós, os outros, deixarmo-nos interpelar pelas telas, por este universo que se abre às emoções, ao nosso sentido, ao significado mais profundo…reconstruir narrativas, significados, nomear … recriar com o nosso olhar e os nossos afetos novas possibilidades e insuflar estes seres com vidas novas!
Abençoados ar, água, terra e todos os planetas que nos deram a Armanda e com ela todo este mundo fantástico, eternizado de modo sublime!

Direitos Reservados (Instagram da pintora Armanda Passos)

Colaboradora/Filósofa