Maria nasceu para ser feliz, como todas as Marias deste Mundo.
Maria era uma menina esbelta, de longos cabelos loiros e encaracolados, olhos azuis, bastante dócil, bondosa, carinhosa e inteligente.
Cresceu e viveu, com mais três irmãos, no meio de uma família bastante tradicional, em que o Homem é que mandava em casa e apenas ele trabalhava e sustentava a família. A Mãe, uma dona de casa e cuidadora dos filhos, foi sempre respeitadora e submissa às ordens do marido.
Maria cedo constatou que as famílias das amigas, entre outras ao seu redor, também tinham uma família patriarcal, umas com regras rígidas e imposições muito severas e drásticas, outras nem tanto.
Aos 15 anos, Maria, como excelente aluna que era, pediu ao pai para continuar e ir mais além com os seus estudos – uma universidade talvez-, mas a resposta foi redondamente negativa, como seria de esperar face aos preconceitos da sociedade na época, em que “a Mulher nasceu para obedecer, cuidar do marido e dos filhos”.
Assim, Maria, ao contrário dos irmãos, não teve a oportunidade de ir mais além do que a 4ª classe na altura, não por falta de aproveitamento ou por não o querer, mas por não lhe ter sido permitido. Viu, triste e amargamente, que os seus irmãos tinham em mãos a oportunidade de estudar, saber e aprender mais, conseguirem ter um curso superior; mas, contrariamente à vontade do pai, não o quiseram – ora, por terem fugido do colégio interno, ora por terem provocado zaragatas e, por isso, serem suspensos por alguns dias.
Desperdiçaram a oportunidade concedida de um possível caminho e futuro melhor … para desgosto da Maria, a quem tinha sido negada a vontade de ir mais longe e impedida a concretização do seu sonho.
No entanto, Maria, rapidamente, aprendeu a cozinhar, a costurar/bordar, a cuidar dos animais e dos campos, tarefas estas para as mulheres na época. Nunca perdeu o gosto pela leitura, lia tudo o que via em casa e em alternativa, requisitava livros na biblioteca itinerante da aldeia, lia um atrás do outro.
Mas, cedo começou a sentir uma revolta, uma tristeza interior e uma certa mágoa por ter nascido Mulher, pois sentia que seria uma sacrificada como a sua Mãe e sabia que não era o caminho que pretendia para si, mas que nada podia fazer, pois era esse o seu destino.
Certo dia, o pai chamou Maria e disse-lhe de que já estava na altura de casar e de que já lhe tinha em mente um marido. Tratava-se do filho de um amigo e colega de trabalho da fábrica de fiação, mais velho quase nove anos do que a Maria, filho único, estatura média, entroncado, pouco conversador, já encarregado de seção.
O assunto era assim tratado na época, numa pequena aldeia de Trás-os-Montes. Marido ideal para o pai de Maria, mas um desconhecido pelo qual Maria não sentia amor nem carinho. O sonho da Maria, uma vez mais, esfumou-se rapidamente. A rapariga que um dia queria ser professora, ensinar as crianças da sua aldeia a ler e a escrever …
Tratava-se de uma imposição dura e crua, para a qual Maria não sabia o que fazer. Fugir, pensou ela, mas para onde e com que dinheiro?!
Maria não teve outra alternativa senão casar e aceitar a decisão do pai.
Foi aí, nesse dia, que o seu tormento começou.
Maria tinha idealizado o seu casamento de sonho: uma manhã de primavera, mesas em redor de um campo florido, um longo vestido branco e esvoaçante, um dia simples, mas repleto de amor sentido pelos noivos e presenciado por todos os presentes.
Rapidamente, o seu sonho tornou-se num pesadelo. Os dias passavam e Maria sentia-se como uma escrava, em que o Manel, seu marido, se revelara bruto, ciumento, agressivo e controlador. Estes comportamentos apenas eram manifestados em casa, entre as quatro paredes, pois quando saíam para visitar a família ou ir aos domingos à missa, revelava-se sempre um marido atencioso, carinhoso, educado e prestável.
Pois, na verdade, todos pensavam na sorte da Maria, que tinha um marido atencioso, carinhoso, educado, trabalhador, com uma boa posição na fábrica de fiação, e que a tratava como uma princesa; tudo era falsidade, manifesta aparência perante a família e a sociedade.
Os anos passavam e Maria não conseguia engravidar. Manel, revoltado, sentindo-se envergonhado e com o ego posto em causa, ferido como Homem, obrigava Maria a ter relações sexuais contra a sua vontade, violentando-a e agredindo-a, questionando-a da razão de não engravidar.
A triste notícia tardou, mas chegou. Maria era estéril.
Manel, revoltado e inconformado, começou a beber, a chegar tarde a casa e a sair com outras mulheres. Chegava a casa bêbado, partia tudo o que via e agredia Maria por tudo e por nada.
Certo dia, Maria decidiu contar aos pais a situação vivida em casa. E, para seu espanto, os pais revoltaram-se contra ela, dizendo que era mentirosa, que sempre viram o Manel a tratarem-na bem, que a Maria sempre quis fazer o que queria e que não podia desfazer o matrimónio que Deus uniu.
Maria sentiu-se abandonada e sozinha. Não podia acreditar no que vira nem ouvira dos seus pais. Como seria possível sentir-se abandonada, só, desacreditada e emocionalmente despedaçada, sem dó nem piedade?
Foi quando, numa manhã chuvosa de março, Maria decidiu fugir de casa. Rumou até ao Porto, de camioneta, sozinha, cheia de medo, com um pequeno saco e apenas alguns trocos na bolsa de mão. Chegada ao Porto, mais precisamente à Batalha, desgastada e cansada sentou-se nas escadas da igreja de Santo Ildefonso a chorar, cheia de medo e de frio.
Como sempre na vida, existe um anjo da guarda que nos protege e guia, o dela não lhe podia faltar naquele momento.
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Angélica, que por ali passava, a caminho de casa, ao ver tal semblante, decidiu parar e dirigir-se a Maria, tendo-lhe perguntado o que fazia ali sozinha, sentada, nesse fim de tarde frio e chuvoso, que ficaria doente se ali continuasse sentada.
Maria levantou o seu triste olhar e disse-lhe que não tinha para onde ir, que estava por sua conta, só e abandonada, que era o seu triste destino. Maria disse a Angélica que estava nas escadas da igreja a pedir a Deus que a guiasse e a iluminasse.
“Vem comigo. Vou cuidar e tratar de ti. Não tenhas medo”, foram estas as palavras de Angélica que Maria nunca esquecerá.
Maria, a cambalear, acompanhou Angélica sem hesitar. Sentiu naquele momento proteção e amparo e que, afinal, havia alguém no mundo que se preocupava com ela, sem perguntas nem julgamentos.
Chegadas a casa de Angélica, Maria depois de um banho quente, roupa lavada e uma digna refeição, desatou a chorar e agradeceu o gesto de uma simples desconhecida, atordoada e sem rumo, envolvida em dor e sofrimento.
Maria contou a sua triste história a Angélica. Nada estranho para Angélica, dado que se tratava de uma Mulher que também tinha “passado as passas do Algarve”, destino que lhe tocara há anos à porta. Mas, esse percurso doloroso, cheio de conhecimento e de sabedoria permitiram ajudar Maria, alertá-la para os percalços, perigos, entraves, obstáculos que tinha de enfrentar e ultrapassar. Nada mais do que uma tormenta e tempestade.
Nada como alguém que sabe ouvir, que entende e sente a dor do outro. Como diz o ditado, bem antigo: “só sabe e sente quem passa por elas”. Pura verdade e realidade.
Angélica rapidamente se predispôs a ajudá-la, a enfrentar o Manel e a justiça.
Não foi fácil. Maria foi ameaçada de morte, perseguida pelo Manel e incompreendida pela família, mas cautelosamente apoiada pela Angélica. Teve de se esconder de tudo e de todos. Inicialmente, sem ver a luz ao fundo do túnel, não desistiu, persistiu sempre. Amedrontada e receosa, lutou alguns árduos anos pela sua liberdade, como ser humano e ser pensante que era.
Foi uma luta dolorosa, morosa e agreste.
Decorridos já cinco anos da angústia e do sofrimento, apesar de traduzidos na merecida e Sã justiça, Maria ainda hoje pensa que tudo o que passou e viveu não passara de um horrível pesadelo.
Hoje, Maria é colaboradora numa escola primária, conseguiu obter o seu equilíbrio e estabilidade emocional, sente-se livre, forte, corajosa e feliz.
Ao olhar para trás, sente tristeza e mágoa por muitas Mulheres terem vivido na época da sua Mãe, terem permitido e aceite viver num sofrimento e dor impossíveis de reclamar e intocáveis e, acima de tudo, terem engolido e acatado as agressões físicas e psicológicas em manifesto silêncio; mantendo um falso casamento, “até que a morte nos separe”.
A Mulher, apesar da sociedade continuar a oprimi-la, cada vez se sente mais vigilante, liberta e guerreira, comportamentos e atitudes bem diferentes do tempo dos nossos pais e avós!

Advogada / Responsável pelo projeto StopViolênciaContraMulheres