Vivemos num mundo incauto onde grassam os medos e os infortúnios. A imperturbabilidade. O nada, o zero. Há pessoas que são zero.
Basta clicar num botão e entram-nos pela casa adentro –, naquela hora em que estamos em família e à mesa, a degustar o repasto solene, os rostos transfigurados e desgastados em corpos quase inanimados, para nos embrulhar o estômago e estorcegar-nos o coração. E talvez nos sintamos defraudados por este mundo que olha de relance sem levantar a cabeça.
Mas quando a levantamos e olhamos com misericórdia, embatemos com as tantas vidas suspensas nos mastros partidos de embarcações à deriva. Ainda bem que as notícias têm hoje, o poder de nos sacudir cruamente para a realidade. Porque a realidade destes homens e mulheres, ultrapassa todas as barreiras da sanidade humana.
Eles dirigem-se lentamente e desorientados, depois de longos dias naquele mar que lhes mostra o outro lado da liberdade – assim o sonham. Talvez “O el dorado” de outros tempos. Deambulam os corpos subalimentados e clandestinos pelo cais em noites negras, sem retalhos de azul. Sacodem as areias das roupas e limpam o sal do rosto.
São homens, mulheres e crianças que tentam resgatar a dignidade e a liberdade que lhes pertence, mas amputada e traída pelo seu próprio país.
No fundo de cada um deles a esperança de um oásis na cidade que avistam. Ou apenas os sonhos latentes a dar à costa…
E a vida longínqua torna-se árida e quente, pesada e húmida como o oceano que lhes naufraga a vida. Tão indefesos e desamparados, homens, mulheres e crianças, desembarcam uma vida que tantas vezes fica estendida no extenso areal da morte.
E as cidades encobertas pelas sombras da noite, erguem-se solitárias, como eles, sem ninguém a caminhar ao seu lado, sem ninguém que os espere.
E o vento sopra forte em remoinho, chicoteia-lhes o corpo como se fossem escravos – talvez seja a escravidão destes novos tempos.
E o mar, o monstro que os abocanha e os engole.
Quem lhes enxuga as lágrimas e acalma as dores e lhes devolve o brilho ao olhar!? Não haverá quem… poucas serão as boias de salvação.
Sinto que os chefes de Estado e Governos e Cimeiras, face aos atuais desafios da migração, também eles, estejam à deriva. Continuamos a ver uma migração desproporcionada e a entrada clandestina de migrantes enredados num negócio de seres humanos. Uma mercadoria indefesa.
De pouco valerão as palavras sobre estes homens e mulheres que atravessam com a vida nas mãos e os olhos incubados, outras rotas, outros mares. Almas solitárias e vazias que morreram lentamente do outro lado, presos às marés negras dos abutres em festa.
Assistimos inertes à degradação do ser humano.
Ninguém abandona o seu país se ele for casa, pão, liberdade. Aconchego e Mãe.
Professora e Escritora