Chegou o verão e o tempo das sardinhas e do peixe grelhado. Por esta altura é habitual atravessar-se o rio e descer à Afurada. É sempre uma experiência das boas! Já lhe conheço há muito os cantos, as suas ruas são me familiares, tal como, os restaurantes onde me sinto em casa. Desta vez, mais uma sardinhada com amigos foi pretexto para o regresso no rescaldo das festas de S. Pedro.
As festas de S. Pedro são o ponto alto do calendário anual da Afurada. Remontam a 1908 e estão ligadas à identidade cultural e religiosa desta comunidade piscatória virada à foz do rio com escarpas na outra extremidade. A origem deste lugar perde-se, no entanto, nos tempos medievais quando surge nos forais de D. Dinis de 1288 como Furada, areal de pesca. Porém, só a partir de 1800 começa a ser habitada surgindo, então, o primeiro bairro de pescadores oriundos das praias da Murtosa, Ovar e Espinho, os quais aqui chegados se dedicam a várias fainas de pesca.
Afurada, começa a ser bastante conhecida pela sua intensa atividade piscatória. Fama predominante para a pesca da sardinha, com a construção primeiro das caícas e mais tarde das traineiras, e também da pesca do sável e lampreia, passando a ser o principal centro piscatório do concelho de Vila Nova de Gaia. E é desta atividade fundadora e dos perigos e medos associados à pesca e ao mar, da necessidade de afugentar a má fortuna e as intempéries que atormentam a vida de quem vive do mar, que emerge a devoção a S. Pedro.
Foto de Maria João Coelho
Refira-se que de acordo com a lenda cristã, Pedro tinha como nome originário Simão. Era natural de Betsaida na Galileia, vivia em Cafarnaum e era pescador no Lago de Tiberíades. Terá sido Jesus Cristo quem o chamou Pedro quando o convidou a segui-lo. Também foi a Simão Pedro que Cristo entregou a missão de governar a Igreja, daí ter sido o primeiro Papa. Após perseguição pelo Imperador Nero, Pedro “o pescador de homens” foi crucificado de cabeça para baixo, por seu próprio desejo por não se achar merecido de ser crucificado como o seu Mestre, no dia 29 de junho do ano 67 em Roma. Mais tarde sobre a sua sepultura foi erguida a Basílica de S. Pedro. Como era inicialmente pescador, o seu culto é comemorado entre as populações ligadas à pesca e é a Pedro que habitualmente as gentes do mar pedem interceção e clemência.
A praceta de S. Pedro guarda a memória da antiga Capela. Aquela em que embateu a barca América quando naufragou em 1909, a mesma que depois das cheias do mesmo ano foi reconstruída, para no final dos anos 60 do século passado ser destruída e dar lugar à atual, uns bons lances acima de modo a ficar protegida do rio. Talvez uma das fraturas na memória coletiva desta comunidade! Os mestres mais velhos continuam a defender que com a antiga capela começou a desaparecer a identidade da Afurada. É aqui que se encontra a estátua em bronze do Santo Padroeiro. Passadas as festas, ainda está adornado de flores naturais e continua a ser ponto de encontro das mulheres que aqui fazem as suas orações.
Na Afurada as mulheres sempre tiveram papel crucial. Aos homens estavam guardadas as aventuras em alto mar. Mas depois de chegados a terra nas caícas carregadas de peixe, eram as mulheres que nas canastras colocadas à cabeça tinham a missão de ir vender o peixe. Longe estão os dias da visão desse universo feminino que Raul Brandão imortalizou ao escrever: “Andam léguas, são infatigáveis e já as vi lançar sozinhas as redes do sável, puxá-las para a terra e dividir o quinhão” (“Os Pescadores”, 1995, p.98).
Mais tarde, de vendedeiras de peixe transformaram-se em lavadeiras no rio, pois era preciso encontrar outra fonte de rendimento, enquanto não chegavam os homens da pesca do bacalhau. A tal ponto estava enraizada esta ocupação que, a própria Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia construiu em 2003 os atuais tanques públicos.
Foto de Maria João Coelho
Hoje, continuamos a ver os estendais multicoloridos a emoldurar um quadro virado para a marina, varais de lugar marcado e decidido em assembleia. Mas já não há lavadeiras profissionais…há a vontade das mulheres da Afurada lavarem à mão as peças que as máquinas não branqueiam nem perfumam com o esmero e o cuidado das suas mãos. E há também o desejo de convívio, a vontade de colocar a conversa em dia e, cada vez mais, a de ficarem nas fotografias dos estrangeiros que rumam aos tanques em busca dos cantares e pregões das lavadeiras da memória da Afurada.
Mas é ao passearmos pelas suas ruas que se descobrem as pérolas resistentes e já menos escondidas. Os peculiares moradores da Afurada!
Continuam a ser maioritariamente mulheres de idade, de negro e de aventais bordados, a lembrar as costelas varinas. Mulheres que se sentam às portas em conversa, ou se encontram a estender roupa ou mesmo a fazer as suas refeições. Mulheres de rostos marcados pelo sol, pelas lágrimas, pelos lutos e também pelas esperas… mulheres que gostam de contar histórias à porta de casa.
Das casas de portas abertas como os seus corações. Casas que se prolongam para as ruas, ou ruas que incorporam vivências comunitárias e utensílios bem usados…cadeiras, mesas, fogareiros, vasos de flores e de plantas aromáticas ladeadas de roupa e de vassouras. Os homens, os mais velhos encontram-se a meio da tarde na Casa do Mar, onde entre tragos de cerveja desfiam as memórias e os problemas. Ou então, junto ao Porto a concertarem as redes com a magia de saberes herdados.
Lembro-me uma altura em que num encontro com um ex-marinheiro de nome Manuel Pedro fiquei fascinada a escutar e a ver o Pedro executar com a mestria de uma vida um sem número de nós. Nós, voltas, falcaças, mãos, costuras, botões, pontos, pinhas, gachetas e coxins… trabalhos da arte de marinheiro. Enquanto isso, invejava-lhe o feito de conhecer todos os países que o mar lhe permitiu…
E entre a genuinidade e a identidade desta Afurada, há uma outra vida crescente feita de turistas e forasteiros que enchem os restaurantes e as esplanadas e dão novo sustento e conversa a este lugar.
E eis que passa por nós um par de homens a empurrar a barca da pregação, de regresso ao Centro Interpretativo da Afurada, para se juntar à rede idealizada pela artista plástica Joana Vasconcelos e executada por pescadores de acordo com as técnicas que tecem as redes de pesca. Rede de malha dourada que se abre simbolicamente, cobrindo atualmente os homens que transportam o andor de S. Pedro durante a procissão. Talvez por isso, haja tanta competição por este andor. Mas essas “lutas”, têm os naturais da Afurada de fazer com a Dona Ana do Mar, pois é ela quem tem a responsabilidade de organizar a procissão….
As festas são da responsabilidade da Comissão de Festas, eleita democraticamente na sede da junta de freguesia, com mandatos de dois anos. Os cartões vendidos porta-a-porta, os mealheiros que cada embarcação ou restaurante vai juntando ao longo do ano e os donativos de cada família, são a maior fonte de receitas que a Comissão vai angariando e que, no final, é exposta nas ruas de modo a manter a transparência dos donativos.
Donativos que asseguram a quem pertence o andor de S. Pedro! E aqui as rivalidades entre restaurantes e empresas locais é uma constante. Este ano coube ao restaurante Taberna de S. Pedro em função de ter sido o estabelecimento que deu o maior contributo, 2.500€ como verificámos na lista de receitas.
Em tempos idos, o Andor era disputado entre mestres das embarcações. Porém, agora que o setor da pesca fica em segundo plano face à restauração, numa Afurada cada vez mais procurada pelos turistas, quer pelo seu peixe quer pela sua típica beleza piscatória, têm sido os estabelecimentos de restauração os que têm conseguido oferecer as maiores contribuições económicas. Não espanta, pois, que o andor de S. Pedro seja já há alguns anos sempre entregue a um dos restaurantes. É que a honra deste andor implica dinheiro, flores para o seu adorno e mais de 20 pessoas para o transportar.
Mas a guardiã da procissão, tem sido nos últimos trinta anos a D. Ana do Mar. Mulher típica da Afurada, contadora de boas histórias e com muita graça. Filha de pescador de bacalhau e de peixeira que ia levar peixe aos fregueses ricos do Porto, foi criada pela tia e cresceu a fazer vida na casa de pasto, que inicialmente era mercearia onde se vendia de tudo um pouco.
Foto de Carlos Vieira
Lembro-me de ver na porta do seu café, melhor dito, na porta da Casa Ana, o cartaz com a ordem dos andores e nome de cada um dos seus responsáveis. Uma logística nada fácil que sempre exigiu da parte da D. Ana muito trabalho. À sua casa tinham de dirigir-se as pessoas com interesse em ficar com um andor. Em função das promessas, das preces ou das aflições, a D. Ana do Mar lá fazia a sua distribuição, ao ponto de os seus próprios históricos andores – o de Santa Ana e da Srª da Graça – serem por vezes entregues a outros familiares ou protegidos…a única condição para o consentimento da D. Ana na entrega dos andores era que os mesmos teriam de ser para as gentes desta comunidade piscatória, os filhos da Afurada.
Este ano, devido ao pendor do tempo, a octogenária mais respeitada e conhecida da Afurada, a tia “Ana das Iscas” para uns ou D. Ana do Mar, não organizou a procissão. Mesmo assim, como me contou a sua irmã Conceição e a amiga Fátima, todos os 42 andores da procissão pararam à sua beira, à porta da sua casa. Uma espécie de vénia em jeito de homenagem à mulher que durante anos planeou e colocou em andamento a grandiosa procissão das Festas de S. Pedro.
O ano passado por esta altura, a sua casa de Pasto na Rua Vasco da Gama, estava apinhada de gente que queria saborear as suas iscas e rojões! Um dia, confidenciou-me que ainda jovem, quando as aprendeu a fazer, tinham muita farinha e apenas uns rabos de bacalhau. Nada comparável à inteira e saborosa posta que várias vezes tive oportunidade de saborear. Iscas fritas à porta, aos olhos de todos. Quantas vezes, ladeada pelas suas filhas e outros familiares a D. Ana do Mar, ante o mar de gente que ali se concentrava nas festas, era a alma do convívio, a voz das graças e as mãos que teimavam em servir os seus rojões com os cominhos generosamente salpicados! Serviu-nos sempre muito bem! E fazia as contas certeiras de cabeça.
Este ano, as portas do seu estabelecimento estiveram fechadas! A festa entristeceu…. Os bancos continuam à porta. Sentámo-nos à espera das lembranças, e logo se juntaram as vizinhas a trazer mais novidades e a dizer que a festa este ano foi mais pobre. Encarámos a fachada da frente e o seu estandarte ainda pendente com o seguinte dizer: Deus assim quis…
Foto de Maria João Coelho
Colaboradora/Filósofa