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Domingo, Maio 5, 2024

Reportagem: Avenida de Ceuta em Lisboa onde o consumo de droga é feito à vista de todos

Mata-se o vício a sós ou em pequenos grupos. Consome-se sem hora marcada. O problema cresceu desde o anúncio do fim da pandemia e atinge, hoje, dimensões alarmantes. O CIDADÃO circundou a Avenida de Ceuta e testemunhou as vidas reais que se afundam a cada viagem ilusória proporcionada pelas drogas.

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Abílio Ribeiro
Abílio Ribeiro
Jornalista

Percorre-se a Avenida e, olhando para o alto, avista-se o outrora afamado bairro do Casal Ventoso, em Lisboa. Quem aqui mora ou tem estabelecimento montado, recusa dar a cara. “Estamos cansados de má reputação”, dizem-nos. A afirmação soa a revolta e, quem a profere, sabe do que fala. “António” é proprietário de um snack-bar situado nas imediações da Av. de Ceuta. Ao segundo café que pedimos ao balcão, solta o desabafo: “não há dia em que eles não venham chatear os clientes para lhes pedir dinheiro”.

Final 2

Eles” são os frequentadores habituais da Avenida de Ceuta. Os que, a céu aberto e a qualquer hora do dia, alimentam um vício que não são capazes de ultrapassar. É o caso de M., um jovem de 30 anos que, juntamente com a namorada, faz maratonas diárias às zonas de maior afluxo de pessoas para tentar “arrecadar uns trocos”.

O LX Factory é um desses locais de peregrinação para os consumidores, já que, “havendo mais gente, há mais possibilidade de darem moedas”. A conversa termina para M.; decorridos poucos minutos, ao perceber que não dispomos de “trocos”, faz-se ao caminho, num compasso acelerado e nervoso. É a ressaca que o move.

Final 3

O mato que cresce na lateral da Avenida de Ceuta encobre parte das vidas devastadas que por ali deambulam. Sem grande esforço, é possível observar os consumidores e os seus gestos rotineiros. A sós ou em pequenos grupos, queimam prata, inalam e injetam-se. Um velho cobertor vermelho com as pontas atadas ao arvoredo serve de abrigo improvisado a quem necessita de “viajar” sem o incómodo da chuva, quando a há. Estamos a poucos metros do local de resguardo. A distância é suficientemente curta para repararmos nas mãos sujas e ressequidas de quem aparenta estar num mundo paralelo, sem mais nada nem ninguém à sua volta.

A imagem repete-se ao longo de toda a Avenida de Ceuta. A extensão, como comprovámos”in loco”, é considerável. Amontoados de roupas, embalagens de comida e até cadeiras irrompem pela vegetação rasa, cujo acesso se faz por trilhos delineados pelas pisadas. São os rastos de quem circula num vai-e-vem constante, desde o momento em que a droga é comprada até ao instante em que ela é consumida.

 

Final 5

Há cerca de 4 meses, quando questionado por um órgão de comunicação social, o presidente da Junta de Freguesia de Alcântara revelou-se preocupado com a realidade que se vive na Avenida de Ceuta. “Nunca vi uma situação como vejo agora”, contou Davide Amado, que “há cerca de um ano” tem alertado “várias entidades públicas e não públicas que tratam desta matéria”. Na mesma altura, o presidente da Comunidade Vida e Paz, Horácio Félix, avisou que estão em surgir em Lisboa “pequenos Casais Ventosos. O consumo de drogas está a crescer de forma assustadora.

                                                                         LX Factory


Descemos até ao LX Factory. Durante anos, este espaço acolheu a Companhia Industrial de Portugal e Colónias, dedicada à transformação de produtos alimentares. Estamos na zona de Alcântara. Lojas, restaurantes, estúdios de trabalho e até um hotel alternativo integram as ofertas do LX Factory, cujo conceito assenta num “centro criativo” virado para a comunidade.

Muitos turistas passam por aqui. E alguns deles são abordados pelos consumidores de droga. Bastaram cerca de 20 minutos de observação para confirmarmos isso mesmo. Uma mulher com idade a rondar os 30 anos apresenta-se de mochila às costas, enveredando calças de ganga e camisola de colorações esbatidas pelo tempo. Estende as mãos gretadas e lança o apelo: “a little help, please, money for food”. As negas, mesmo que persistentes, não a demovem da sua intenção de angariar dinheiro. Rodopia o corpo em direção a outros transeuntes e repete a abordagem. As escaras inscritas no seu rosto são a cicatriz mais visível de um passado e de um presente marcados pelas drogas.

Final 4

Invertemos a marcha. Voltamos a calcorrear o piso de terra batida junto à Avenida de Ceuta. Avistam-se outros consumidores, que caminham a passo apressado em direção à vegetação. O ritual repete-se. Um homem de meia-idade vasculha os bolsos freneticamente, retira a sua dose e prepara-a. Indiferente aos olhares de quem passa, fala consigo próprio, proferindo alguns impropérios. O tom da sua voz acusa algum nervosismo. É a pressa da “viagem”, que acabará por lhe devolver a paz utópica de que tanto procura.

Uma idosa aguarda o autocarro numa paragem nas proximidades. Abraça uma mala preta de tiracolo com todo o vigor, olha para os lados e demonstra apreensão. Dizemos quem somos e ao que vimos. Não quer ser abordada. Limita-se a responder: “tenho algum medo, sim”. Adianta que apanha ali o autocarro com regularidade, já que a filha “mora perto”. Não teve problemas “até à data”, ainda que relate que as pessoas com quem se vai cruzando naquele local “não parecem ser de confiança”.

A gravidade do problema que se vive na Avenida de Ceuta é reconhecida. Prova disso é a intenção da Câmara Municipal de Lisboa, ao estar já a preparar a ampliação da sala de consumo assistido de estupefacientes instalada na Quinta do Loureiro, junto à Avenida.

Apenas falta encontrar a localização exata para construir esta segunda “sala de chuto”. Em paralelo, estão a ser avaliados os procedimentos para financiar uma nova unidade móvel de tratamento (existem, atualmente, outras duas unidades a funcionar em vários pontos da cidade). O assunto foi discutido há poucas semanas, em plena Assembleia Municipal, com o autarca Carlos Moedas a admitir a necessidade de respostas céleres.

O consumo de drogas na periferia de Lisboa – e, em concreto, na área adjacente à Avenida de Ceuta – é uma questão crítica e complexa. É ponto assente que a respetiva resolução envolve um esforço conjunto de toda a sociedade. As entidades oficiais, no entanto, desempenham um papel crucial, na justa medida em que podem oferecer respostas mais amplas e capazes de colmatar lacunas como a desigualdade social, a falta de oportunidades e a dependência.

A vulnerabilidade está à vista de todos, tal como O CIDADÃO testemunhou. O consumo de drogas não pode servir de escape aos desígnios de uma realidade que, raras vezes, está em consonância com o mundo perfeito que todos idealizamos.

Informação adicional:
Se atualmente confronta-se com a adição de drogas ou tem familiares que se debatem com este problema, O CIDADÃO recomenda que contacte a Linha VIDA SOS Droga:

Contacto telefónico: 1414 (gratuito, anónimo e confidencial)
Email: 1414@sicad.min-saude.pt

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