São os primeiros dias de outono e trazem uma aragem silenciosa. Uns dias de pouco azul a desdenharem um sol coado. E eles, os da minha rua, vão escasseando na calçada. Os primeiros frios não são bons para os seus ossos – dizem-me, quando me cruzo com eles por estes dias. Outros, fazem finca-pé e mantêm-se na espera de um palmo de conversa com os estudantes da universidade. Estes trouxeram algum enlevo aos da minha rua.
A vizinha do rés do chão dá-lhes conselhos e previne-os de possíveis desventuras. A da janela do lado, de olhar doce, conta-lhes que em agosto a rua mete medo, sem gente e que eles são aves de arribação. Alimentam assim uma jovial alegria.
E há os outros que ao longos dos anos vão passando por mim, no seu caminhar pesaroso que se torna visível, o mundo que carregam nos ombros. Hoje passei por ela, peregrinava aquele rosto encubado, talvez para dentro das suas tristezas. Ia mal agasalhada. Pareceu-me mais magra, trémula. Os cabelos em desalinho e um descuido que me inquietou.
Lembrei-me dela, esbelta e decidida. Dos olhos que se voltavam quando passava. Um misto de deusa e mulher. Alimentava as vozes de uma cidade e toda a maledicência de que era denunciada.
Perscrutei-lhe um acordar de manhã difícil. Que faria agora, sem o viço de outrora!? Sem as noites cheias daquele respirar intenso e glamoroso onde se movimentava. Talvez ainda lhe viva no corpo o calor das grandes viagens às capitais europeias. Talvez ainda misture as lágrimas e o riso que partilhou com os amantes. E a muitos se deu e de poucos recebeu.
Hoje, corre-lhe um tempo desfocado, escasseia a força e a alma mudou de sítio. Sente-a exposta, fragmentada.
Às vezes, aperta-se como quem embala um filho na ausência de um abraço.
Nada sei da sua felicidade ou dos seus desencantos. Mas sei da sua liberdade invejada pelos que nunca ousaram ser.
Não nega um sorriso e retribui.
A rua continua a vê-la passar com os livros que requisita na biblioteca do bairro.
Gosta de ler, sentada num pequeno jardim, ali, onde o ar é respirável e o coração das árvores pulsa a cada primavera.
Um dia, falámos da vida e de saudade – saudades, tenho da rapariga que morreu em mim. E falou-me da dor que sente pelos que não arriscam viver. Quanto à sua própria dor, basta-lhe uma aspirina.
Acabámos a sorrir e um afago entre as mãos e prometemos falar de liberdade no próximo encontro.
São assim os da minha rua – na esperança de uma nova primavera
Professora e Escritora