Há uma serenidade imensa na arte de observar sem absorver, na capacidade de contemplar o mundo sem que ele nos engula. Vivemos tempos em que o exterior se impõe com uma voracidade assustadora, onde o ruído, a opinião vazia e banal e a superficialidade ameaçam invadir as nossas trincheiras mais íntimas. Manter-nos firmes, proteger as nossas energias e escolher conscientemente o que permitimos entrar é, hoje, um ato de resistência humanista. Não nos deixarmos contaminar é o lema da vida.
Hermann Hesse, no seu “Siddhartha”, escreveu que “não há nada no mundo que se assemelhe à paciência de quem encontrou a sua paz interior”. Esta paciência, que é também uma escolha ativa, implica aprender a dizer NÃO ao que desarmoniza o nosso espírito. Não se trata de indiferença, mas de discernimento. Observar sem absorver significa distinguir o que é valioso daquilo que é ruído, manter uma fronteira clara entre o que somos e o que nos é imposto.
Marco Aurélio, o imperador-filósofo, refletiu nas suas “Meditações” que “a felicidade da tua vida depende da qualidade dos teus pensamentos“. O mundo exterior pode ser caótico, mas é dentro de nós que reside o espaço sagrado. É aqui que decidimos que sementes germinarão. Permitir que a toxicidade de fora infiltre a nossa essência é ceder o poder sobre a nossa própria vida. Observar sem absorver é, assim, um exercício de autocontrolo e sabedoria.
Simone Weil, profunda conhecedora da alma humana, ensina que “a atenção é a forma mais rara e pura de generosidade“. Observar não é desprezar ou virar as costas, mas prestar atenção plena, compreendendo as dores e alegrias do mundo sem se tornar um espelho dessas emoções. Ao protegermos a nossa essência, mantemos a capacidade de dar o melhor de nós mesmos, o que seria impossível se nos deixássemos consumir pelo que nos desgasta. Não é por acaso que muitas pessoas sofrem psicologicamente, com depressão, esgotamentos.
E Eça de Queirós, com a sua sensibilidade, na “Correspondência de Fradique Mendes”, que combina uma crítica social refinada com reflexões sobre a vida e o comportamento humano, descreveu como “há almas que têm, na sua delicadeza, um instinto protetor contra a vulgaridade“. É esta delicadeza que precisamos de cultivar, este instinto que nos permite caminhar pelo mundo de olhos abertos, mas de alma protegida. Não como quem rejeita, mas como quem escolhe. Viver em paz é uma escolha, claramente.
Viver desta forma exige atenção plena, uma consciência apurada que se alicerça nos valores mais profundos. Ser humano é, acima de tudo, encontrar o equilíbrio entre a abertura ao mundo e a proteção da nossa essência. Só assim podemos continuar a encantar-nos com a vida – com as suas belezas subtis, os seus momentos de silêncio e de luz – sem permitir que o seu peso nos esmague.
Há pessoas extraordinárias que caminham entre nós, cuja presença irradia algo raro e quase indescritível. São aquelas que, à primeira vista, podem parecer duras, exigentes, por vezes até intransigentes. No entanto, estas características são apenas o reflexo da sua profundidade, do peso de uma responsabilidade que carregam no íntimo: a de proteger a essência do humano, de guardar o que é nobre e verdadeiro. Estas silenciosas almas guardiãs vivem com uma consciência elevada e um coração vigilante, muitas vezes sacrificando o próprio conforto para assegurar que a chama do que é belo, justo e eterno continue a arder neste mundo.
É uma dureza que não nasce da insensibilidade, mas da lucidez; uma coragem que não se limita à resistência, mas que se estende ao ato de inspirar os outros. Estas pessoas são faróis em noites tempestuosas, pois não só enfrentam os seus próprios abismos, como iluminam os caminhos dos que as rodeiam. Marco Aurélio seria, ele próprio, um exemplo elevado: um líder que carregava nas suas reflexões a responsabilidade de viver com virtude, mesmo no caos do poder imperial. Como guardiões da humanidade, estas almas transformam as suas lutas internas em força, e a sua força num legado de coragem e resiliência que faz ressonância em todos os que têm a sorte de cruzar os seus caminhos.
Viver em plenitude exige reconhecer os perigos do excesso alheio, essa invasão constante de opiniões, emoções e energias que muitas vezes carregam uma carga tóxica e desgastante, debilitante. O excesso dos outros – seja na crítica constante, na necessidade de validação ou na projeção das suas frustrações – pode contaminar subtilmente a nossa serenidade, roubando-nos a clareza e a força interior. É essencial estabelecer limites saudáveis, erguer barreiras invisíveis, mas intransponíveis, que nos permitam ouvir sem nos ferirmos, compreender sem absorver. Proteger-nos dessa toxicidade não é egoísmo, mas amor-próprio; é escolher conscientemente preservar o espaço onde a nossa alma floresce, longe do tumulto e da corrosão do supérfluo. Aprendamos a escutarmo-nos mais a nós mesmos do que aos outros! Tens epopeias escritas dentro de ti que nunca leste! Vamos ler?
Observar sem absorver é uma filosofia para os tempos modernos. É a chave para navegar no caos, mantendo intacta a beleza do ser humano, essa chama que nos torna únicos e nos liga ao todo. Não somos únicos nas palavras, mas sim nos atos, nas atitudes, na postura digna connosco e com os outros. Somos os Guardiões da Humanidade.
Professor, Poeta e Formador