Há tempos, numa das minhas reflexões, escrevi que, “os livros para nada servem, se não produzirem ou inspirarem mais conhecimento criativo a quem os lê“, o que ressoa profundamente a um mundo cada vez mais saturado de informação instantânea e superficial. Num tempo onde a tecnologia nos bombardeia com dados e conteúdos a um ritmo vertiginoso, é fácil esquecer o verdadeiro propósito da leitura: a transformação do conhecimento em criatividade, em inovação, em vida.
As livrarias são mais do que simples lojas; são espaços sagrados, verdadeiros templos de conhecimento, onde o silêncio, as prateleiras abarrotadas de palavras e o cheiro dos livros velhos e novos criam uma aura quase reverente. Entrar numa livraria é como atravessar o limiar de um templo onde a curiosidade humana é celebrada e onde a busca de conhecimento e o desejo de se perder em novas realidades se encontram.
Virginia Woolf capturou bem essa magia ao dizer que “não há portão, nenhum ferrolho, nenhuma fechadura que possas impor à liberdade da minha mente.” Para ela, como para tantos de nós, os livros não são apenas fontes de sabedoria, mas portais para outras vidas, experiências e lugares, disponíveis a quem tiver coragem de abrir uma capa e iniciar uma nova viagem. E onde melhor que numa livraria para nos lançarmos nestes mundos? Ali, cada estante é como uma janela para uma nova aventura, para uma nova descoberta.
Desde miúdo que, sempre que fosse possível, entrava em livrarias como se visitasse uma catedral, um lugar de oração ou para retiro de silêncio e reflexão. Em muitas, em vários lugares do mundo, pude deter-me ali horas infinitas, sentado a folhear autores múltiplos. E foi o que fizemos em vários templos destes, em Lisboa. A Livraria da Travessa, por exemplo, ali ao lado do jardim do Príncipe Real, é muito completa. Apreciei a presença de várias cadeiras confortáveis, convidando o leitor a permanecer, a deleitar-se ali. Fiquei encantado com a grande variedade de livros estrangeiros, nomeadamente em língua francesa. Confesso que me retenho sempre mais nas estantes dos filósofos… Pensar para existir somente? Existir para pensar, dizer e partilhar também…
Num dos seus mais belos poemas, Sophia de Mello Breyner Andresen afirma: “porque os outros se mascaram mas tu não.” Assim são as livrarias; nelas, não há máscaras. Apenas a sinceridade das palavras e dos mundos contidos em cada página. São um refúgio para aqueles que desejam fugir ao efémero, mergulhar na profundidade, encontrar respostas – ou, pelo menos, novas perguntas. Ao entrarmos numa livraria, lembramos que o conhecimento é algo precioso, algo a ser protegido e celebrado, como numa verdadeira catedral do saber.
Os livros, esses objetos tão antigos e eternamente relevantes, são muito mais do que meras fontes de informação. Eles são portais para universos desconhecidos, espelhos que refletem a condição humana e, acima de tudo, são ferramentas de transformação. Cada página que viramos é uma oportunidade não apenas de aprender, mas de recriar, de reimaginar e de expandir os horizontes da mente. No entanto, a questão que se coloca é: quantos de nós realmente aproveitam essa oportunidade?
Vivemos numa sociedade que valoriza a rapidez e a eficiência. O conhecimento é frequentemente reduzido a resumos, posts, tweets e vídeos curtos. O ato de ler um livro, por sua vez, requer tempo, paciência e, principalmente, um estado de espírito recetivo. É preciso mergulhar nas palavras, deixar que elas nos envolvam e nos desafiem. Mas, no meio de tantas distrações, quantos de nós conseguem fazer isso? Quantos de nós conseguem transformar a leitura numa experiência criativa e não apenas informativa?
O autor e pensador Umberto Eco afirmava que “quem lê muito e anda muito, vê muito e sabe muito“. Essa visão evidencia a importância da leitura como um veículo de conhecimento que transcende a mera acumulação de informações. No entanto, para que essa sabedoria se converta em criatividade, é necessário um passo a mais: a reflexão. Ler sem refletir é como plantar uma semente em solo árido; a germinação é impossível. É preciso nutrir as ideias, questionar, dialogar. É preciso deixar que os livros nos inspirem a criar, a fazer, a agir.
A história está repleta de exemplos de como a literatura pode inspirar criações artísticas e científicas. Pensemos em autores como Mary Shelley, cuja obra “Frankenstein” não apenas desafiou as convenções da época, mas também inspirou debates éticos sobre ciência e tecnologia que ecoam até hoje. Ou em Jorge Luis Borges que, através de suas narrativas labirínticas, instigou gerações de escritores e pensadores a explorarem a interseção entre realidade e ficção. Esses autores não apenas transmitiram conhecimento; eles incitaram à criatividade, à imaginação e à inovação.
Entretanto, a responsabilidade de transformar a leitura em criatividade não está apenas nos livros ou nos autores, mas também em nós, leitores. É imperativo que cultivemos um ambiente propício à reflexão e à criatividade. Isso pode ser feito através de clubes de leitura, discussões em grupo ou mesmo diários pessoais onde possamos registar as nossas impressões e ideias. O diálogo é também fundamental; ao compartilharmos as nossas interpretações e reflexões, ampliamos o nosso próprio entendimento e, consequentemente, a nossa capacidade criativa.
Além disso, devemos reconhecer que a criatividade não se limita ao campo das artes. Ela é um componente essencial em todas as áreas do conhecimento, incluindo ciências, negócios e educação. A capacidade de pensar fora da caixa, de questionar o status quo e de propor novas soluções é o que impulsiona a inovação. Portanto, os livros devem ser vistos como aliados nesse processo, não como meros depósitos de informações.
Aquela minha primeira afirmação inicial não deve ser encarada como uma crítica à literatura, mas como um convite à ação, através da escrita, por exemplo! Os livros têm o poder de nos transformar, mas esse poder só se concretiza quando nos comprometemos a lê-los de forma crítica e reflexiva.
É tempo de desafiarmos a inércia criativa que permeia a sociedade contemporânea e resgatarmos o verdadeiro valor da leitura. Que possamos abrir os livros não apenas para adquirir conhecimento, mas para nos inspirar a criar, a sonhar e a moldar o mundo ao nosso redor. Afinal, a verdadeira magia da literatura reside na sua capacidade de nos fazer ver além do que é, para imaginar o que pode ser.
Faça-se!
(Crónica dedicada a Ana Sofia Melo, leitora compulsiva, viajante dos livros)
Professor, Poeta e Formador