“A terra está a ficar coberta por uma nova raça de homens que são ao mesmo tempo instruídos e analfabetos, dominando computadores e não entendendo nada sobre almas, esquecendo até mesmo o que tal palavra poderia ter designado.”
Christian Bobin
É impossível ficarmos indiferentes aos recentes acontecimentos que têm elevado discursos e atos de ódio e de violência depois da morte de Odair Moniz, vítima de disparos da polícia, no bairro da Cova da Moura. “Morreu um homem!”, como bem sublinhou Daniel Oliveira, no Eixo do Mal, na quinta-feira, dia 24 de outubro. Morreu um homem e os desacatos, a revolta, a raiva incendiaram ânimos inaceitáveis na opinião pública e em certos quadrantes políticos, que todos nós devemos repudiar, moderar ou abrandar, antes que seja irremediavelmente tarde.
Aquela citação de Christian Bobin, escritor e poeta francês, tece uma crítica à modernidade e à maneira como o progresso tecnológico parece ter afastado as pessoas de uma compreensão mais profunda do ser humano. Ele fala de uma nova “raça” de homens que, apesar de serem instruídos e dominarem a tecnologia, são analfabetos no que toca à alma e à essência humanas. O domínio dos computadores, símbolo do mundo moderno e tecnológico, contrasta com a perda de uma conexão mais íntima com os sentimentos, as emoções e os significados que antes eram naturais para as gerações anteriores. Bobin lamenta uma espécie de amnésia espiritual, onde as pessoas esqueceram o que significa compreender as almas, talvez sugerindo que a tecnologia, apesar dos seus benefícios, nos levou a um afastamento do que é mais importante na vida: a compreensão do outro e de nós próprios.
A reflexão de Christian Bobin torna-se ainda mais relevante quando consideramos a dinâmica das redes sociais e a forma como as interações humanas se alteraram na era digital. Por detrás dos ecrãs, muitas pessoas encontram uma espécie de escudo que lhes permite agir de uma forma que, no mundo físico, talvez nunca ousassem. Esta “nova raça de homens”, como Bobin sugere, parece estar bem adaptada ao uso da tecnologia, mas paradoxalmente desconectada da empatia e da compreensão genuína do outro.
A Internet e as redes sociais criaram um espaço onde opiniões, muitas vezes carregadas de ódio e raiva, são lançadas sem filtro, como se as palavras não tivessem peso. A ausência de um contacto físico, de um olhar ou de uma voz, transforma essas interações em atos frios, desprovidos de humanidade. A palavra escrita nos comentários torna-se uma arma, e o anonimato ou a distância proporcionada pelos ecrãs parecem desinibir as pessoas de expressarem sentimentos que, de outro modo, seriam reprimidos ou repensados.
Esta forma de “analfabetismo emocional” é visível na proliferação de discursos de ódio, na falta de compaixão e na agressividade que frequentemente se vê nos comentários online. As redes sociais, que inicialmente prometiam conectar o mundo e aproximar as pessoas, revelaram-se também uma plataforma onde a falta de compreensão das almas, mencionada por Bobin, se expõe de maneira crua.
Por trás de cada comentário de ódio há, provavelmente, uma pessoa que, em algum momento, perdeu a capacidade de ver a alma do outro, de reconhecer a humanidade e a fragilidade que nos tornam todos iguais. Este fenómeno é um reflexo do afastamento que Bobin descreve: vivemos numa época em que dominamos máquinas, mas esquecemos como lidar com o coração e as emoções, tanto as nossas como as dos outros.
Alain de Botton, no seu livro «O Ódio a Si Mesmo: Aprender a Gostar de Si Próprio», defende que “Quando odiamos algo em nós, tornamo-nos rápidos a detectar e a atacar esse mesmo traço nos outros. O mundo virtual é apenas um reflexo ampliado desse fenómeno.” Aqui, de Botton toca na ideia de que o ódio que vemos expresso online muitas vezes surge de uma projeção das nossas próprias inseguranças. Aqueles que se mostram mais agressivos nos comentários das redes sociais podem estar, na verdade, a lutar contra o seu próprio sentimento de inadequação. Botton propõe uma reflexão sobre como a falta de aceitação pessoal pode levar a comportamentos agressivos e como a autocompaixão pode ser um antídoto para o ciclo de ódio e julgamento que permeia tanto a vida real quanto o mundo virtual.
A “nova raça” de que se fala não é necessariamente nova no sentido cronológico, mas sim na forma como escolhemos interagir e manifestar a nossa existência no mundo. Somos, em muitos casos, estrangeiros na terra das emoções, perdendo o vocabulário necessário para entender e expressar empatia, compreensão e respeito.
As reflexões de Christian Bobin e de Alain de Botton convidam-nos a uma pausa urgente e necessária neste ritmo frenético da modernidade. Ambos apontam para a perda de contacto com o essencial: a alma humana, o amor-próprio e a capacidade de ver o outro na sua complexidade e vulnerabilidade. Bobin alerta-nos para um mundo cada vez mais analfabeto na linguagem do coração, enquanto de Botton nos ensina que esse desprezo pelos sentimentos começa dentro de nós, na forma como nos julgamos e, consequentemente, como julgamos os outros.
Se quisermos criar um espaço, físico ou digital, onde a empatia substitua o ódio, é essencial que paremos para refletir, que aceitemos as nossas imperfeições e que aprendamos a falar a linguagem da compreensão, do cuidado e do respeito — tanto para com os outros quanto para connosco.
Professor, Poeta e Formador