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Quinta-feira, Janeiro 23, 2025

O Fogo, Chama da Transformação – Por José Paulo Santos

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José Paulo Santos
José Paulo Santos
Professor, Poeta e Formador
Richard Wu scaled
Foto de Richard Wu. Direitos Reservados

Gaston Bachelard escreveu: “Quando queremos que tudo mude, chamamos o fogo.” E com razão. O fogo é mais do que um elemento natural: é o símbolo da transformação, do desejo humano de renovação. Purifica, mas consome. Ilumina, mas também destrói. Em cada chama, existe um paradoxo: o fim de algo que, paradoxalmente, inaugura o novo.

Nero e o incêndio de Roma são talvez os exemplos mais emblemáticos do fogo como ferramenta de transformação. Raios, é no que dá ver o filme “Quo Vadis”! Em 64 d.C., o centro do império ardeu em chamas por dias, destruindo bairros inteiros e consumindo templos e mercados. Nero, acusado de ter provocado o incêndio, viu a cidade reconstruída sob novas bases, com ruas mais largas e o espetáculo do Coliseu emergindo anos depois. A destruição marcou o início de um novo urbanismo, mas também alimentou a fúria popular e o mito do imperador que tocava lira enquanto as chamas dançavam.

Avancemos até 1789. Ok, 200 anos depois, andava eu a celebrar pelos Champs-Élysées. A Bastilha não foi apenas tomada; foi reduzida a escombros. As tochas que iluminaram a noite da revolução eram também o símbolo de um povo em chamas, exigindo liberdade, igualdade e fraternidade. Aquela revolução incendiária não apenas destruiu o Antigo Regime, mas também lançou o mundo numa nova era de direitos e deveres.

O 25 de abril de 1974 foi um momento em que o fogo simbólico da liberdade reacendeu uma nação. Embora sem violência, a Revolução dos Cravos foi alimentada por um fervor ardente: a necessidade de transformar um regime opressor em democracia. As canções do querido Zeca Afonso, como “Grândola, Vila Morena”, tornaram-se o rastilho que incendiou os corações. Aqui, o fogo não destruiu, mas iluminou, abrindo caminho para uma nova era de direitos e liberdade. Como dizia Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena.” Ah, como o meu corpo e alma eram ainda tão pequenos… Mas o fogo era já centelha em mim!

Muito mais recentemente, vimos o fogo nas ruas de Paris. Os agricultores, num gesto de revolta, atearam chamas a pilhas de feno e pneus em frente ao Ministério da Agricultura. Esse fogo, longe de ser apocalíptico, era um clamor por respeito e reconhecimento. Representava a luta por sobrevivência numa economia que muitas vezes ignora quem produz o essencial.

Na sociedade, o fogo é um catalisador de mudanças. Durante a Primavera Árabe, as imolações de jovens desesperados deram início a uma série de protestos que incendiaram regiões inteiras, clamando por liberdade e justiça. Poucos anos depois estava eu na Tunísia a viver, durante 3 anos as repercussões dessa Primavera…

O fogo também é a centelha que inflama os movimentos sociais. Desde os protestos por justiça climática até às manifestações contra a desigualdade racial, as chamas são símbolos de resistência e renovação. Nelson Mandela dizia: “Às vezes, é preciso incendiar os alicerces para reconstruir uma casa digna.”

Como Carneiro, signo do fogo, carrego em mim esta energia transformadora. O fogo interior é também o desejo de mudar, de romper barreiras e de construir algo novo. Mas o que é este fogo que habita em nós? É o desejo humano de transcender, de deixar uma marca, de transformar sonhos em realidade. Aristóteles dizia que “a alma nunca pensa sem uma imagem” — e o fogo é a imagem da transformação.

Hoje, enfrentamos outro tipo de fogo: os incêndios florestais, as temperaturas em ascensão, a combustão da nossa casa comum. Este é o fogo que não purifica, mas devora. Como alertava Greta Thunberg: “A nossa casa está a arder.” Para revertermos este caminho, é necessário um fogo diferente, um fogo de consciência e de ação.

E, claro, o amor. Camões descreveu-o como “o fogo que arde sem se ver”. Mas será sempre invisível? Não será antes o fogo mais evidente, aquele que nos move, que nos une e que, por vezes, nos consome? Anaïs Nin escreveu: “No amor, como na arte, tudo é fogo.” E talvez seja essa a lição do fogo: não tememos a destruição que ele traz, porque sabemos que dela nasce algo mais forte, mais belo, mais verdadeiro.

Tive o privilégio de trabalhar com a Promethean, uma empresa dedicada a incendiar a paixão pela Educação, aquela que instalou quadros interativos em milhares de escolas em Portugal. Liderando projetos inovadores, pude acender a chama da esperança e da transformação nas práticas de ensino em Portugal. Auxiliei professores a explorar as Tecnologias de Informação e Comunicação, trazendo metodologias que renovaram salas de aula e inspiraram milhares. Era como se cada formação fosse um pequeno incêndio controlado, espalhando luz e inovação por onde passava.

Enquanto assistente auxiliar na Universidade de Lisboa, iniciei também o meu doutoramento, aprofundando o impacto destas tecnologias na Educação. Os corações de tantos professores, que ardentemente desejavam inovar, tornaram-se o meu combustível. O meu trabalho era mais do que técnico; era um ato de amor pela aprendizagem.

Na mitologia grega, Prometeu roubou o fogo dos deuses para o dar à humanidade, um ato que simboliza o avanço do conhecimento e da civilização. Hoje, vivemos uma nova era de fogo: a Inteligência Artificial. Assim como Prometeu enfrentou as consequências do seu ato, também nós enfrentamos os desafios e riscos desta nova ferramenta poderosa. A IA tem o potencial de iluminar os caminhos do progresso, mas também de queimar as estruturas que consideramos seguras.

É aqui que o simbolismo do fogo se torna vital. Como usaremos esta “chama moderna”? Será para criar, iluminar e transformar ou para consumir e destruir? O fogo da IA deve ser um instrumento de empatia e evolução, não uma arma de domínio. Tal como Prometeu trouxe o fogo para libertar a humanidade da escuridão, talvez esta nova era exija que sejamos guardiões conscientes da chama que criámos.

Além da Educação, a minha vida é também movida pelo fogo da poesia e da escrita. Nos livros “Aldeias em Mim” e “O Invisível do Voo”, explorei as chamas que iluminam os recantos da alma humana. A paixão pela Filosofia, Neurociências e Comunicação Não Violenta acende em mim uma chama única: a de buscar sempre a bondade, a beleza e a verdade. Cada verso, cada reflexão são uma tentativa de alimentar o fogo da alma humana. Afinal, como dizia Victor Hugo: “Nada é mais poderoso do que uma ideia cujo tempo chegou.”

Nas crónicas que publiquei no Jornal iOnline e em O Cidadão procurei ser essa centelha que incita à reflexão, que provoca mudanças, que ilumina caminhos. É uma tarefa ousada, mas necessária, pois acredito que cada palavra tem o poder de acender fogos adormecidos nos corações.

Que fogo necessitamos acender no mundo de hoje? Um fogo que destrua os muros da indiferença? Ou um fogo que ilumine o caminho para a esperança? Como Carneiro, signo do fogo, acredito que a transformação é inevitável. E talvez o fogo mais importante seja aquele que carregamos dentro de nós — a chama que, ao iluminar o nosso interior, ilumina também o mundo.

O fogo não é apenas destruição; é renascimento. Que possamos chamar o fogo certo, no momento certo, para transformar o que precisa ser mudado e deixar as cinzas do passado fertilizarem o futuro.

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