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Segunda-feira, Maio 6, 2024

No 24 de Abril de 1974

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Meninos “grandes” com 15 anos que, feliz ou infelizmente, conheciam as regras apertadas de um regime totalitário. Feliz ou infelizmente, porque esse “saber” resultava da experiência em ver familiares chegados, vizinhos e amigos dos pais a serem presos, perseguidos, expulsos das universidades onde davam aulas, por não serem apoiantes da “Situação”, como se dizia. E à socapa, no Liceu, iam-se chegando aos mais velhos que já lutavam, tenuamente, pela democracia. Havia meninos assim. E outros que ignoravam por completo a vida real do país.

Apesar de serem “Contra a Situação” e fortemente castigados, os pais eram pais e pronto! Lutavam para que os filhos viessem a ter uma vida melhor,  não os queriam a sofrer nem colocados, tão cedo, no “fio da navalha”.

Mas voltando ao título da crónica, o meu 24 de Abril de 1974…

Era quarta-feira e só tinha aulas da parte da manhã. A tarde era para fazer o “Jornal de Parede” ( Jornalismo a germinar!) que,  fortemente condicionado e manipulado, dava um certo gozo para quem gostasse de relatar acontecimentos do Liceu. Depois, obrigatório ir para casa.

Mas havia outra paixão arrebatadora e que fazia saltar as “linhas vermelhas” , como se diz agora, das regras instituídas – jogar futebol.

 Com uma bola de jeito, boa, daquelas de couro que nos ofereciam de quando em vez pelo Natal, no aniversário ou quando transitávamos de ano escolar. E apenas nessas alturas. Se a estragássemos ou perdessemos, só no ano seguinte e se calhasse… pois o dinheiro não abundava, antes pelo contrário.

E já tinhamos ficado sem elas, roubadas, é o termo certo!, pelo Reitor, que as guardava numa arrecadação do gabinete, mas só as devolvia se os nossos pais as fossem lá pedir. Obviamente, não contávamos em casa que ultrapassáramos as regras. E ficávamos sem o nosso  brinquedo mais precioso.

Da minha parte, entre os 13 e os 15 anos, já tinha contribuído com uma para a despensa do Reitor.

O motivo do roubo, era simples. Atrás das salas de aula, havia um terreno em piso de terra dura, plano, com excelentes dimensões e balizas com rede e tudo. Disputavam-se aí os campeonatos, durante as aulas de ginástica. Fora desses eventos, era proibido jogar à bola. Tal como era proibido ficar pelo Liceu, findas as aulas e outras atividades escolares.

Os mais afoitos, ignoravam a regra e disputavam ali emocionantes jogos de futebol. Às vezes, corria tudo bem, parecia que o poder estava distraído. Noutras ocasiões, víamos entrar no campo um carro preto que transportava o Reitor e era conduzido – sempre assim foi – pelo “bigode de arame”, nome que dávamos ao motorista, um homem baixo, franzino e que nunca sorria.

No dia 24 de Abril de 1974 – longe estávamos de imaginar o que viria a seguir – lá vivíamos intensamente mais um jogo. E nesse dia, a bola era minha. Tinha escassos quatro meses, pois ganhara-a em dezembro, no aniversário. Nunca tinha tido uma tão boa. E bonita! De couro! Aos quadrados pretos e brancos, igualzinha àquelas com que as equipas da Primeira Divisão usavam. Uma relíquia!

O automóvel aproximou-se e parou no meio do campo. Como sempre, parávamos também, anestesiados pelo medo. Às vezes, o proprietário da bola, chutava-a para longe, a ver se evitava a captura por parte do poder. Outras vezes, pegava nela, colocando-a debaixo do braço, à espera da sentença anunciada: “dá cá a bola! Toda a gente para casa” – era o que dizia sempre o “bigode de arame”, rumando ao carro.

Naquele dia era eu quem estava debaixo do fogo da incompreensão. E à exigência daquele homenzinho, “pau mandado”, respondi que ia embora e não dava a bola. Era minha e não tinha que dar. Mais uma e outra vez a ordem saiu da boca de um rosto seco e antipático, abrilhantado pelo bigode fino e comprido. Que não dava e que não dava! Fui firme. Ainda tentou chegar-se a mim para a retirar, mas recuei. E se fosse preciso, desatava a correr. O meu bem  é que não libertaria!

Percebendo que não havia hipótese, o “bigode de arame” foi ao automóvel e retirou do porta-luvas uma envelope “amanhã traz isso assinado pelo teu pai. Todos para casa.”

Sabia de ginjeira o que ali dizia. Não era a primeira vez que a recebia. Tratava-se de uma convocatória ao encarregado de educação para uma reunião com o Reitor. E os nossos pais, apesar de muito democráticos, nunca recebiam de bom grado aquelas missivas. E, habitualmente, o nosso corpo é que pagava… Ficando a bola retida, mas desta vez pelo nosso pai que só a libertava, bem mais tarde e sob certas condições. Afinal, bem melhor do que ficar aprisionada no Liceu para a vida inteira.

Como o meu pai estava ausente, só chegava à noite, depois de eu estar deitado, entregar-lhe-ia a carta no dia seguinte. 

Entretanto, nessa madrugada, por volta das seis horas, comecei a ouvir tocar o telefone. E o meu pai, em surdina, ficava a falar mais tempo do que o normal. Voltei a adormecer, mas por volta das oito, hora de levantar, o rádio estava ligado e a emissão era estranha, com música clássica.

Bom dia, hoje ficas em casa, não vais ao Liceu” – disse-me a minha mãe quando cheguei à cozinha para tomar o pequeno almoço.

O Pai?” – perguntei

“Foi para Lisboa. Parece que houve um golpe de Estado…”

Perante o meu olhar incrédulo, a minha mãe rematou: “Caiu o governo. Portugal vai ser um país livre se tudo correr bem.”

E correu. O meu pai só voltou no dia seguinte, muito satisfeito, porque Marcelo Caetano já não mandava no país.

E a carta do Reitor foi direitinha para o balde do lixo da casa de banho. 

 

 

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