Ali deitados sem nudez do corpo
Unidos na alma nua
Dois corpos estendidos nos braços da noite
Vieram de longe para estar mais perto
Tão perto e já nascidos por dentro
Vieram ser ontem para ser hoje
E esperar a madrugada do amanhã
Voaram e ficaram no silêncio
Da quietude da pele
Antes do beijo
Tão antes do beijo.
in O Invisível do Voo, José Paulo Santos
Disse um dia George Sand que “o beijo é uma forma de diálogo”, o que não deixa margem de dúvida, quando reconhecemos duas bocas silenciosas a comunicarem emoções e sentimentos na mais profunda intimidade.
Mas o contrário também é verídico: o diálogo é uma forma de beijo. No diálogo partilhamos o pensamento, o que sentimos, o que olhamos, o que desejamos ou necessitamos. Procuramos aproximar-nos, conciliar ou confrontar ideias. Levamos as palavras até à face da pele do outro, invadimos os sentidos do outro. Beijamos pelo diálogo! O beijo nasce no diálogo. E eu só existo porque existe a pele do outro.
Só existo porque a tua pele existe. Esta frase evoca a profunda interconexão entre o corpo e a mente, um conceito que ressoa tanto na poesia quanto nas neurociências. A pele, como barreira sensorial, não é apenas uma proteção física, mas também um recetor de emoções e experiências. Através dela, sentimos o toque, a temperatura, e até mesmo a presença do outro, transformando a nossa perceção do mundo.
Nas neurociências, os estudos revelam como as interações sensoriais moldam a nossa identidade e a nossa consciência. As sinapses que se formam em resposta a estímulos táteis e emocionais são fundamentais para a construção de memórias e para a formação do eu. Cada toque, cada gesto, é uma dança neural que se desenrola, criando um mapa da nossa vivência.
A poesia, por sua vez, captura essa essência fugidia da experiência humana. Ela transforma a biologia em arte, dando voz aos sentimentos que emergem da pele. As Palavras tornam-se a ponte que conecta as emoções sentidas ao interagir com o mundo e os outros. Assim, a poesia não é apenas um reflexo da realidade, mas também uma forma de explorar as profundezas do ser.
Ao reconhecer que “só existo porque a tua pele existe”, assumimos que a nossa existência é entrelaçada com a do outro. Em cada toque, em cada palavra, encontramos a confirmação de que somos seres sociais, moldados pela interação e pela sensibilidade que a pele nos proporciona. É nesse espaço de troca e ressonância que a neurociência e a poesia se encontram, celebrando a complexidade da experiência humana.
A frase “só existo porque a tua pele existe” também pode ser vista como uma poderosa afirmação sobre a interdependência do ser humano. Ao aprofundar esse tema, podemos integrá-lo com os campos da filosofia, da psicologia e das neurociências, formando uma teia rica de significados.
Na filosofia, a noção de que a identidade é construída através da relação com o outro remete a pensadores como Emmanuel Levinas (filósofo francês), que enfatizou a ética do encontro com o outro. Para Levinas, a face do outro convoca-nos a uma responsabilidade, a uma exigência de reconhecimento que molda a nossa própria essência. A existência do eu é indissociável da presença do outro.
Além disso, podemos considerar a perspetiva hegeliana, que vê a autoconsciência como emergente do reconhecimento mútuo. No famoso “Senhor e Servo”, Hegel argumenta que a consciência de si só se realiza quando reconhecida por outra consciência. Essa intersubjetividade é fundamental para a formação do eu, sugerindo que a nossa identidade é, em grande parte, uma construção relacional.
A psicologia também oferece entendimentos valiosos sobre essa interconexão. A teoria do apego (John Bowlby, 1907-1990), por exemplo, destaca a importância das relações interpessoais no desenvolvimento emocional e social. As experiências de afeto e segurança que recebemos do contato físico e emocional com os outros moldam não apenas as nossas memórias, mas também o nosso comportamento e a nossa capacidade de formar laços saudáveis.
A psicologia social, por sua vez, explora como a perceção do outro influencia a nossa autoimagem e autoestima. O conceito de “self” é frequentemente definido em relação aos grupos sociais e às interações que mantemos. Assim, a presença do outro não só enriquece a nossa experiência, mas também define como nos vemos e nos sentimos.
As neurociências, área que imensamente me enriquece, fornecem uma compreensão biológica de como essas interações moldam a nossa experiência. O sistema nervoso, em particular as áreas do cérebro responsáveis pelo processamento emocional, é profundamente influenciado pelas interações sociais. O toque, por exemplo, ativa áreas cerebrais ligadas à recompensa e ao bem-estar, libertando neurotransmissores como a ocitocina, que promove vínculos e afeto.
Além disso, as pesquisas em neuroplasticidade mostram que as nossas experiências sensoriais e emocionais podem alterar a estrutura e a função do cérebro ao longo do tempo. Cada toque, cada relação, não apenas nos afeta emocionalmente, mas também fisicamente, moldando o nosso cérebro e, por conseguinte, a nossa identidade.
A linha que une a filosofia, a psicologia e as neurociências, sintetizadas na poesia, é a compreensão de que a existência do eu é uma construção relacional. A pele, como interface sensorial entre os indivíduos, torna-se um símbolo dessa interdependência. Através do toque, da presença e do reconhecimento, formamos não apenas a nossa identidade, mas também a essência do que significa ser humano. Nesse sentido, “só existo porque a tua pele existe” não é apenas uma reflexão poética, mas ainda uma profunda verdade filosófica, psicológica e científica que revela a beleza e a complexidade das relações humanas.

Professor, Poeta e Formador