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Domingo, Abril 27, 2025

Museu Ferreira de Castro – Literatura, jornalismo e a misteriosa caixa selada para abrir em 2050

Situa-se em Sintra, numa rua central estreita, e ocupa uma casa que pode passar despercebida à primeira vista. O Museu Ferreira de Castro convida a descobrir o escritor nascido em Salgueiros (Oliveira de Azeméis, 1898) e que, “para não morrer à fome”, escrevia centenas de crónicas, reportagens, críticas e artigos em jornais a ritmo alucinante. Publicou obras como “Emigrantes”, “Eternidade” e “Terra Fria”. Uma das mais conhecidas é “A Selva”, que inspirou o filme com o mesmo título e no qual participaram Diogo Morgado, Chico Díaz, Maitê Proença e Gracindo Júnior.

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Comecemos pelo fim, pois até na morte Ferreira de Castro quis primar pela diferença. Em 1970 (quatro anos antes de falecer), o escritor solicitou às autoridades: “desejaria ficar sepultado à beira de uma dessas poéticas veredas que dão acesso ao Castelo dos Mouros, sob as velhas árvores românticas que ali residem”. Pedido feito, desejo cumprido. Quem hoje passa numa vereda que dá acesso ao Castelo dos Mouros, poderá contemplar um banco talhado na rocha, abaixo do qual repousam os restos mortais de Ferreira de Castro.

 

Casa Museu Ferreira de Castro, em Sintra. Foto de ABÍLIO RIBEIRO

O escritor pretendia, assim, permanecer eternamente ligado, de corpo e alma, à natureza que lhe inspirou centenas de páginas: “ficar perto dos homens, meus irmãos, e mais próximo da lua e das estrelas, minhas amigas, tendo em frente a terra verde e o mar a perder de vista – o mar e a terra que tanto amei”. Ferreira de Castro escreveu parte da sua obra tendo como fundo os cenários verdejantes de Sintra, ficando hospedado por longas temporadas no Hotel Netto.

Máquina de escrever de Ferreira de Castro
A máquina onde Ferreira de Castro escreveu a maior parte das suas obras. Foto de ABÍLIO RIBEIRO


“A Selva”: a obra-prima escrita aos 31 anos

O Museu Ferreira de Castro mostra todo o percurso de vida do escritor por ordem cronológica. Objetos pessoais, manuscritos originais, edições raras, ilustrações, fotografias e artigos de jornais integram o espólio constituído por mais de 20 mil documentos. Para se entender a importância do autor no contexto literário, basta recordar que o seu nome foi proposto duas vezes para o Prémio Nobel de Literatura. “As Maravilhas Artísticas do Mundo” (uma longa viagem pela história da arte, dada a conhecer entre 1959 e 1963) foi premiada pela Academia de Belas Artes de Paris. E, em 1970, arrecadou o primeiro Prémio Águia de Oiro, do Festival Internacional do Livro de Nice.

“A Selva” (1930) saiu-lhe do punho com apenas 31 anos de idade. Por muitos considerado como um livro monumental, esta foi a obra que lhe permitiu romper fronteiras. Ferreira de Castro foi o autor português mais traduzido, antes de José Saramago e de António Lobo Antunes. “A Selva” foca-se na vida dos seringueiros (trabalhadores que extraiam látex da seringueira, uma árvore da Amazónia, que era depois convertida em borracha), numa altura em que esta atividade estava já em declínio. Até Albert Camus lhe teceu rasgados elogios.

“A Selva”, obtra-prima do autor. Foto de ABÍLIO RIBEIRO
Cartaz do filme “A Selva”. Foto de ABÍLIO RIBEIRO


Torna-se emigrante aos 12 anos

Ferreira de Castro, órfão de pai aos 8 anos, teve uma infância igual à de tantas outras crianças criadas no meio rural. Aos 12, tomou a decisão radical de embarcar a partir de Leixões, a bordo do “Jerôme” (um navio a vapor “negro e sujo”), com destino a Belém do Pará, no Brasi. Impunha-se a necessidade de sustento. Entre 1911 e 1914, trabalhou arduamente nas margens do rio Madeira (um dos braços do Amazonas), num seringal que, ironia das ironias, se chamava “Paraíso”. Anos decorridos e após outros trabalhos, fundou com um emigrante o semanário “Portugal” (1917).

Regressou a Lisboa em 1919. Os primeiros anos na capital revelaram-se penosos. Trabalhou em jornais e revistas, fundou publicações, e a dada a altura deu por si a escrever crónicas, contos, reportagens, críticas e história infantis a um ritmo alucinante (por vezes, mais de 100 por mês). “Para não morrer de fome”, viria a referir mais tarde. Foi ainda presidente eleito do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa.

Carteira Profissional de Jornalista. Foto de ABÍLIO RIBEIRO

A morte da sua companheira, a escritora Diana de Lis (em 1930, precisamente na altura em que “A Selva” era elogiada pelo público e pela crítica), deixou marcas profundas. Ferreira de Castro teve uma septicemia e uma depressão grave que quase o levou ao suicídio. Recuperou na Madeira e, já de novo em Lisboa, decidiu abandonar “O Século” e o jornalismo profissional. Recusava trabalhar numa imprensa silenciada pela censura e travou uma luta infatigável pela liberdade de expressão.

A caixa enigmática para abrir em 2050

As décadas seguintes foram dedicadas à publicação de obras como “A Lã e a Neve” (1947) e a “A Missão” (1954). Presidiu à Sociedade Portuguesa de Escritores, com Aquilino Ribeiro como sócio n.º 1 e o próprio Ferreira de Castro como nº 2. Depois da celebração dos seus 50 anos de atividade literária (que coincidiu com uma edição especial de “Emigrantes”, ilustrada por Júlio Pomar), viria a publicar o último romance: “Instinto Supremo” (1968), que aborda o processo de pacificação dos índios. Portanto, terminou como começou: a abordar os meandros da selva amazónica (que esteve na base de “A Selva”).

Em 1973, um ano antes de morrer, doou todo o seu espólio à vila de Sintra. A justificação: “amo profundamente aquela vila. Foi em Sintra que escrevi, durante cerca de trinta anos, a maior parte da obra que realizei”. No Museu Ferreira de Castro, há paixão e mistério. Prova disso é uma caixa misteriosa, recheada de “cartas femininas” dirigidas ao escritor – e que se encontra lacrada e assinada pelo seu próprio punho. Por vontade do autor, a caixa só deverá ser aberta em 2050. “Sempre me faltou coragem para reduzir a cinzas esta multidão de sonhos”, escreveu meses antes de morrer. Contagem decrescente para conhecermos em detalhe o teor das “cartas femininas”. Já “só” faltam 26 anos. Aguarde-se, pois, em conformidade.

Dicas úteis:

Museu Ferreira de Castro

Morada:
Rua Consiglieri Pedroso, 34, Sintra

Horário:
3.ª a 6.ª feira: 10h às 18h.
Sábados e domingos: 12h às 18h.
Encerra às 2.as feiras e feriados principais.

Reportagem de Abílio Ribeiro ( texto e fotos)

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