Ao lobregarmos a sua residência, ficamos admirados como está debruada com tanta cereja,
porque Amália nasceu (1920) no tempo das cerejas (sem conhecer ao certo o dia do seu verdadeiro nascimento) e quando a indagaram sobre a data do seu nascimento, para lhe
atribuírem a carteira de artista, ela escolheu o dia 01 de Julho.
Nasce na Mouraria, filha de pai sapateiro e de mãe peixeira, oriundos da Beira, é com os avós maternos que vive a sua infância O seu sonho de ter sido Psicóloga ou Bailarina, cedo se esmorece na necessidade de acudir financeiramente em casa. Emprega-se na fábrica de rebuçados da Pampulha, é engomadeira, é bordadeira e vende fruta, uma infância que não chegou a ser infância…
O som e as palavras (inauditas) de Gardel, ficaram no ouvido, com apenas doze anos e tenta imitá-lo. Três anos mais tarde, no seu ponto de venda de fruta no Cais da Rocha, começa a cantar os primeiros fados e assim é eleita para solista, da Marcha de Alcântara.
“Sou fadista porque quiseram que eu fosse, ou talvez, porque não permitiram que eu fosse
outra coisa”.
Amália optou o nome do avô Rebordão (Amália Rebordão), nas suas primeiras atuações, porque nutria por ele, grande admiração, em detrimento da avó autoritária e agreste, onde
brinquedos e carinhos não faziam parte da educação, ao ponto de a ter colocado aos nove
anos na escola, para retirá-la aos doze… Daí essa enorme necessidade de ser amada, como
nos filmes que assistia quinzenalmente, cobiçando as vidas das atrizes repletas de lindos
vestidos, imponentes casas e maridos maravilhosos, o fado “Lágrima” é um exemplo disso.
O irmão levou-a ao concurso de rainha do fado e conseguiu ser cabeça de cartaz, no “Retiro da Severa” (1939).
A Casa de Fados “A Severa” dá-lhe o seu primeiro ordenado (500 escudos por mês) para
cantar dez dias. Em poucos meses, transforma-se num fenómeno. O cachet é de longe o maior alguma vez pago a uma fadista. Ela mesma conta a sequência: “No Retiro da Severa eram 500 escudos por mês. No Solar da Alegria eram 800. Daí a um mês já ganhava 300 escudos por dia. E dois ou três meses depois já ganhava um conto de reis por espetáculo”.
Inovou na forma de trajar (vestido preto) e no xaile pelos ombros, sua marca característica. A sua beleza latina, sedutora e elegante, rapidamente a levaram ao teatro de revista, opereta e cinema. “Alerta Está” (1943), “Fado História de Uma Cantadeira” (1948), “A Severa” (1958), “Sapateiro Prodigioso” (1968). Capas Negras ficou vinte e duas semanas em cartaz. O filme “Os Amantes do Tejo”, faz um enorme sucesso em Paris! Frederico Valério descobriu e compôs novos fados para Ela, “Ai Mouraria” estreou no Rio de Janeiro (Copacabana Palace) para um contrato inicial de quatro semanas que rapidamente aumentou para quatro meses.
O seu talento de cantar em outras línguas, ajudou a criar uma carreira internacional, jamais vista em algum artista português. O seu disco “Amália na Broadway”, disco que ela em vida não deixou que fosse publicado, é um disco de jazz, acompanhado por uma grande orquestra e onde ela interpreta canções imortais do repertório americano. António Ferro transformou-a num ícone do Estado Novo.
“Embora tenham dito que era uma exportação do governo passado, é mentira, nunca fui nem serei de governo nenhum” – desabafa numa entrevista de rádio.
E largos anos mais tarde, quando recebeu da mão de Mário Soares, a Grão – Cruz da Ordem
Militar de Santiago: “A diferença que há para mim, entre vocês e os de antigamente, é que
vocês sentam-me à vossa mesa. Os outros recebiam-me (…), mas era diferente, só era
recebida no fim, para cantar…”.
A escolha de poetas como Mourão Ferreira, Pedro Homem de Mello, Alexandre O’Neill ou mesmo Camões, era nova no fado. O pai de Mourão Ferreira, professor catedrático, não se conteve: “Agora canta letras à Picasso…”.
Apesar da escassa escolaridade, a sensibilidade de Amália para as palavras era aguda. O
encontro com o compositor Alain Oulman, mudou musicalmente o seu trajecto e permitiu-lhe “encaixar” os poemas “à Picasso” numa base musical diferente da dos fados tradicionais.
“Um dia eu estava num acampamento [na praia do Lisandro, perto da Ericeira] e levaram-me o Alain Oulman, que tinha feito uma música a pensar em mim. As pessoas que estavam ao pé de mim achavam aquilo muito complicado. Para mim eram fados. A nobreza que está lá dentro é que conta. Porque o fado é um estado de alma, uma canção que quer dizer destino e tem essa carga”.
“Fado Português”, com poema de Régio, é um dos marcos dessa colaboração. Amália, não é
mais a “rapariguinha” do Retiro da Severa, mas uma mulher madura, com uma imagem
moderna (ousada): fuma, veste calças, usa o cabelo curto e frequenta ambientes noturnos.
Pouco antes de morrer: “Depois de ter visto a Dama das Camélias, com 11 anos, comecei a beber vinagre e a abrir as janelas para ficar como a personagem principal da história. Já
pensei morrer muitas vezes. Recentemente, quando me diagnosticaram cancro, como julguei que era maligno, tentei morrer. Fui para Nova Iorque porque queria vir já tapada, não queria que ninguém me visse morta. Levei para o meu quarto um vídeo e uma série de cassetes do Fred Astaire, acabei por não me matar por causa das danças”.
Em 1995, voltou aos palcos para um emocionante concerto de despedida. Choviam os
aplausos, as flores e a emoção. O Coliseu parecia que vinha abaixo – expressão dela.
A interrupção na idolatria, que em Portugal aconteceu com a revolução de 1974 – e
subsequente identificação de Amália com o Antigo Regime – estava resolvida.
No Japão, onde pôs japoneses a cantar o fado. Na América, onde quiseram que ficasse.
Privou com todos: Plácido Domingo, Mitterrand, Marlene Dietrich, Piaf. O mundo continuava a seus pés.
A casa está morta desde que Amália partiu, em Outubro de 1999. Portugal inteiro chorou as “talhas do seu caixão” – que tão emotivamente cantava no fado “Povo que Lavas no Rio”.
Músico/Colaborador