Em ano de comemoração do cinquentenário da «Revolução dos Cravos» celebra-se por coincidência o centenário de outro feito, só possível porque, na realidade – e não apenas nos domínios do sonho ou da ambição –, foi o povo quem mais ordena.
Esse feito pioneiro foi a realização da primeira viagem aérea Portugal – Macau que teve início em 7 de Abril e termo em 20 de Junho de 1924. Os seus protagonistas foram os capitães António Jacinto de Brito Paes, de 39 anos, o capitão José Manuel Sarmento de Beires, de 31 anos, e o tenente e mecânico Manuel António Gouveia, de 34 anos.
A viagem requereu a utilização de dois aviões. O primeiro, o Pátria, foi um Breguet XVI BN2, com motor Renault de 300 Cv. Era um aparelho de 1919, considerado já na altura obsoleto, que tinha servido como bombardeiro na primeira Grande Guerra. Ficou destruído numa aterragem de emergência em Budhana (Índia), devido à violência do furacão que o precipitou no solo. Para prosseguir viagem foi necessário comprar outro avião, um Haviland DH9, de fabrico inglês, que foi baptizado como “Pátria II”.
A compra dos dois aviões e as demais despesas da viagem só foram possíveis de realizar porque o povo português para elas contribuiu através de uma campanha extensa e prolongada, sem precedentes, de angariação de fundos por várias formas. Ao contrário do que acontecera com a primeira travessia do Atlântico Sul, por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, que foi apoiada pelo estado português no âmbito das comemorações do centenário da independência do Brasil, a projectada viagem Portugal-Macau de Brito Paes e Sarmento de Beires foi alvo de manifesto desinteresse por parte do governo português, desinteresse que se traduziu, não apenas por obstáculos diversos e sucessivos até à autorização tardia, mas também pela recusa do necessário apoio financeiro. À partida para a viagem, no Campo dos Coitos (Milfontes) nem o Presidente da República Manuel Teixeira Gomes, nem o primeiro ministro Álvaro de Castro, nem sequer mesmo o ministro da Guerra, sob cuja tutela estavam os oficiais aviadores, estiveram presentes ou se fizeram representar.
Quando se tornou necessário comprar o segundo avião e o governo português se dispôs finalmente a assumir a despesa, dessa feita foi a vontade popular que recusou tal contributo que quase considerou ingerência numa missão que tinha por sua, tal o ponto a que se tinha envolvido e empolgado para a sua completa realização. E as iniciativas populares de angariação de fundos prosseguiram com idêntico senão mesmo maior entusiasmo e imaginação. Daí o pleno acerto das palavras de “Sarmento de Beires”:” é o povo de Portugal” que vai connosco e quem manda». O povo que só voltaria a mandar cinquenta anos depois.
A inclemência da passagem do tempo, a velocidade dos progressos na aviação e a crónica indiferença nacional pelos seus verdadeiros heróis foram apagando da memória colectiva esta temerária viagem pioneira, num «condor gigante de alumínio e seda» (Sarmento de Beires), de carlinga descoberta, que ficou registada numa obra que se lê como livro de aventuras e como livro de viagens.
Oxalá as comemorações entretanto anunciadas tenham a virtualidade de reavivar e difundir o mérito desta meia volta ao mundo em oitenta dias, sem ficção, e o dos seus protagonistas.
Jurista