Quantas vezes não somos influenciados pelas narrativas românticas da nossa cultura, nos nossos filmes, séries, músicas e livros preferidos, onde “em nome do amor… vale tudo”? Heathcliff e Catherine, no seu romance marcado por ciúmes e vingança, Bella e Edward, dependentes mútuos e obsessivos ou, mais recentemente, Tessa e Hardin, marcados por abuso emocional, possessão e traição. Mas é por que se amam, certo?
Estudos recentes demonstram como determinadas representações do amor e das relações amorosas podem influenciar a perpetração da violência e constituir um fator que mantém as vítimas em relações abusivas. As conceções tradicionais de amor, frequentemente, idealizam a fusão completa e a codependência emocional entre parceiros. Isto é, a idealização do amor como algo que deve consumir completamente uma pessoa…
A componente “passional” de um “amor intenso” legitima e idealiza, frequentemente, a alteração do estado normal do indivíduo, como forma de exasperação emocional, facilitando a adoção de práticas relacionais abusivas e violentas. Tolerada sob a conotação “manifestações de amor”, a violência na intimidade torna-se, assim, uma prova de afeto.
Mas… onde tudo isto começa? Que educação tivemos sobre relações saudáveis e positivas? Falamos disso na escola? E com os nossos pais? A aposta na educação relacional e emocional é, ainda, escassa ou mesmo inexistente. Esperamos que crianças e jovens criem relações, tenham estilos de comunicação adequados e saibam gerir as suas emoções, apenas a partir da sua interação social e não da discussão destas questões.
Deste modo, formamos adultos e idosos que estabelecem critérios de qualidade de uma relação e conceções de amor com base nos ciúmes de Hardin, na dependência de Bella, na possessão de Edward, na vingança de Heathcliff e em ditados populares como “amores arrufados, amores dobrados”. Estas e outras formas de cultura são, efetivamente, o maior veículo de normas, valores, expectativas e guiões de comportamento que constrangem o modo como as pessoas fazem sentido das relações e se posicionam nas relações de intimidade.
Ciúme, perseguição, controlo em saídas de casa, amizades e redes sociais, chantagem e manipulação emocional, ameaça, agarrar e/ou encurralar para um beijo forçado “apaixonado” são alguns de tantos exemplos de micro agressões, que fazem parte da violência psicológica. No entanto, estes e outros comportamentos como codependência, sacríficio excessivo a custo próprio e ausência de limites, pertencem às conceções tradicionais de amor, e tem sido legitimados e até romantizados.
Questionaremos esses “amores” de Heathcliff e Catherine, Bella e Edward, Tessa e Hardin?
“Como assim não tens ciúmes? Não queres saber, de certeza que não gostas de mim!”
O ciúme patológico é muitas vezes justificado em nome do amor, quando, na realidade, é uma manifestação prejudicial de um amor possessivo. O parceiro ciumento pode justificar comportamentos invasivos, como verificar mensagens, controlar as atividades e até impor restrições à liberdade pessoal do outro. Em muitas culturas, a violência, quando enquadrada pelo ciúme, é interpretada como um sinal e manifestação de amor.
“É tão protetor que não me deixou sair de casa sozinha com os meus amigos”
Conceções tradicionais de amor idealizam, frequentemente, o papel de um parceiro como provedor e protetor, e do outro como alguém que precisa de ser cuidado e protegido. O mesmo leva a uma dinâmica de poder desequilibrada em que um parceiro exerce controlo sobre o outro, camuflando-o como proteção.
“É o que nós queremos e gostamos, somos um só, estar sempre juntos e partilhar tudo”; “Só precisamos um do outro para sermos feliz, afastamo-nos da família pelo nosso amor!”; “El@ é sempre preocupad@ comigo, já me telefonou tantas vezes a perguntar com quem estou e o que estou a fazer!”
A fusão e anulação individual são comuns na idealização de um “amor incondicional”. Ademais, a ênfase na ideia de “amor a qualquer custo”, de que este envolve sacrifício e sofrimento, pode levar à tolerância de comportamentos abusivos e controladores. Um parceiro abusivo pode usar essa crença para manipular e controlar o outro, fazendo-o acreditar que o abuso é uma expressão de amor e a vítima, por sua vez, pode sentir que é sua responsabilidade suportar esse sofrimento.
“Explicou que me fez trocar a saia por calças para não estar tão exposta, porque gosta de mim”
As conceções tradicionais de amor podem, também, promover estereótipos de género, que contribuem para relações abusivas. A ideia de que os homens devem ser dominantes e as mulheres devem ser submissas potencia a violência e controlo masculinos, tolerados ou mesmo encorajados.
“Já sabes que o nosso amor é eterno, por isso tens de aceitar o que aconteceu, só a morte nos separa”
Idealizações de um amor eterno e inquebrável leva os seus intervenientes a acreditarem que o abuso é uma parte inevitável do relacionamento e dificulta o seu reconhecimento. Após o casamento, o estigma associado ao divórcio ou ao término de relacionamentos de longo prazo intensifica, ainda, a ausência de procura de ajuda e contínuo da relação.
“Proibi-o de fazer isso, porque ele precisa de ajuda e só eu sei o que é melhor para ele, ainda me vai agradecer”
Por fim, a ideia de que um parceiro deve ser “salvo” ou “consertado” pelo amor legitima, muitas vezes, a mudança ou controlo do comportamento do outro. Esta tentativa de controlo é abusiva e prejudicial, uma vez que desrespeita a autonomia e a individualidade da outra pessoa.
Afinal, talvez a fantasia do “amor doentio e provocador” destas personagens não reflita o que é desejável numa relação.
Se até aqui chegou, provavelmente está a questionar-se sobre a sua relação amorosa ou outras que conheça. Pode até sentir insegurança sobre uma eventual pessoa parceira e o amor entre vocês. Não se apoquente. É, na verdade, através deste desconforto de nos questionarmos sobre o que é o amor, as nossas relações com outros e conceções de romance enraizadas culturalmente, que promovemos relações saudáveis e não abusivas, baseadas no respeito mútuo, na comunicação aberta e na igualdade de poder. Lembre-se: o amor em que para de se amar, não é amor. Nada vale em nome desse dito “amor”. Porque esse “amor” é, na verdade, abuso.
Psicóloga/ Mestre em Psicologia da Justiça e da Desviância