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Terça-feira, Janeiro 21, 2025

Ler e Pensar com Camus é Absurdo? – Por José Paulo Santos

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José Paulo Santos
José Paulo Santos
Professor, Poeta e Formador
o estrangeiro camus
Direitos Reservados

Albert Camus (1913-1960) morreu bem cedo, com 46 anos, vítima de acidente de automóvel, no dia 4 de janeiro, quando marcavam 13:55 no painel de bordo. Camus legou-nos uma vasta obra sobre a condição humana, com forte influência filosófica, política, e na arte.

Dentre as obras que me apaixonam, encontram-se três: Calígula, O Mito de Sísifo e O Estrangeiro (1942). Este tríptico literário insere-se num movimento chamado Surrealismo, no qual Camus e André Breton se inscrevem. Ora, é sobre aquela última obra que vou deambular no meu leito.

Este mundo atual, bastante marcado por irracionalidades, intolerâncias e fanatismos, redes sociais e uma crescente proliferação de seguidores de influenciadores de qualidade duvidosa, leva-nos a pensar silenciosamente sobre o sentimento existencialista, a solidão e os conflitos interiores que vivemos.

A narrativa ficcional de O Estrangeiro passa-se na Argélia, antes da Independência.

Hoje, a mamã morreu. Ou talvez ontem. Não sei.” – diz Meursault, a personagem principal da obra. E, já aqui, o leitor fica perplexo.

Meursault comete um homicídio. E será condenado à morte. E por isso encontra um sentido para a existência.

O que encarna Meursault filosoficamente? Nada sabemos dele. Nem nome ou idade ou passado, sequer. É apenas um empregado de escritório.

Tem uma relação com uma mulher: Marie. Ela ama-o, mas não parece ser recíproco.

Quando ela lhe pergunta se ele a ama, responde: “Creio que não.” E perante a pergunta: “queres casar comigo?“, Meursault responde: “É-me indiferente.”

Aos nossos olhos, Meursault parece-nos grosseiro, indelicado, insensível.

Porém, ele é assim com toda a gente. Faz parte do seu ADN, da sua forma de estar no mundo.

Meursault incomoda o leitor. Esta personagem desestabiliza-nos pela sua intransigente sinceridade. É incapaz de não ser sincero. Não é sádico. É sobretudo verdadeiro.

Meursault não diz o que o outro deseja ouvir. Ele exprime o que deve dizer! Ele expressa o que realmente pensa e sente. Não importa se dói, se desaponta, mas é a verdade. Ele não é permeável às convenções, às regras sociais. Ele é estrangeiro a tais cânones.

Certamente não diz tudo o que pensa, mas pensa tudo o que diz. E isto causa-nos um problema, intriga-nos, porque a sociedade exige que se entre no jogo das normas sociais, e que nos anulemos diante delas, fingindo, colocando máscaras, de modo a não se poder estragar o momento, e ser tratado de sacana, idiota ou de filho da mãe (ou outra coisa do mundo mais obscuro!).

Meursault não se opõe a nada ou a ninguém. Ele é simplesmente o que é. É isso que o caracteriza. Ele não contesta nada, seja de ordem moral ou política ou discursiva. É assim e pronto. É um estado fisiológico.

No dia do enterro da mãe, ele responde a Marie: “a culpa não é minha.” Choca-nos? Claro que sim, porque, numa sociedade, supostamente, cada um de nós deve seguir normas e leis e posturas.

Ora, as normas são o intermediário entre nós e o mundo. São o vestuário do nosso comportamento. Vestimo-nos para cobrir a nossa animalidade. As roupas instauram uma distância entre cada um de nós, a que chamamos respeito. No seu sentido etimológico, respeitar é a “ação de olhar para trás.” Distanciar-se é termos formas de tratamento como o “você” para manter o respeito, supostamente. Da mesma forma que nos vestimos para manter o respeito, também vestimos o nosso comportamento, em nome desse mesmo respeito.

Ora, Meursault não veste o seu comportamento, pois seria mascarar-se, travestir-se, e isso seria falsificar-se.

Meursault, esta personagem estranha e estrangeira, indispõe-nos. O seu interior mental é intrigante, bizarro. O espírito de Meursault é uma tela impressionista!

É um homem alinhado. O comportamento dele está alinhado com os seus pensamentos, que por sua vez estão alinhados com as suas impressões. Tão valioso! No fundo, e pensando bem, é ele o mais normal, ou seja, ele não realiza qualquer contorcionismo entre o que sente e o que diz. Ele não se obriga a contrariar aquilo que perceciona. Ele não acrescenta intermediários artificiais, superficiais, por outras palavras, falaciosos ou falsos.

Ele distancia-se do que é corrupto na sociedade. A consciência de Meursault não está corrompida, desviada da verdade e da realidade, dos valores. Ele vive a realidade e não se permite viver a ilusão.

A Razão (ratio), essa que pressupõe o cálculo, não faz parte da postura desta intrigante personagem. Não se deixa dissociar do Ser. Não aceita a dissociação, essa obrigação que a sociedade exige. Entre aquilo que somos e aquilo devemos ser. Dissociar-se entre o Ser e o Parecer. Se nos dissociamos, é porque estamos na projeção mental de nós mesmos.

Afinal, como devemos fazer, como devemos ser, como devemos dizer. Que tortura!

Isto é traição. Estamos a trair o que verdadeiramente somos.

Meursault, ele, é inteiro. E tu?

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