10.8 C
Porto
8.3 C
Lisboa
12.9 C
Faro
Quarta-feira, Janeiro 15, 2025

Guerra Colonial e deserção

As mais lidas

Onofre Varela
Onofre Varela
Jornalista/Cartunista

Na edição d’O Cidadão de 29 de Março último, noticia-se um colóquio realizado na Escola Básica e Secundária Dom Martinho Vaz, de Castelo Branco, em Vila Franca de Xira, sobre o tema “Guerra Colonial Portuguesa“, com a intervenção de dois desertores: Carlos Neves e Fernando Cardoso. Este, disse: “Ainda hoje os desertores são considerados traidores à pátria. Eu assumo a minha condição de traidor à pátria, traidor à pátria do fascismo, da fome, do analfabetismo, da tortura, da falta de liberdade, da prisão, da guerra, da exploração”.

Considero de elevada importância o tema da Guerra Colonial e louvo a autenticidade e a coragem destes dois oradores por terem assumido a deserção do serviço militar obrigatório, não querendo participar naquela guerra que era o preço que a Pátria Portuguesa nos cobrava pelo facto de se sermos jovens.

Pela frontalidade demonstrada no relato das suas experiências, daqui envio ao Carlos Neves e ao Fernando Cardoso, o meu abraço fraterno e solidário, com a afirmação de que é muito importante saber-se da Guerra Colonial contada por quem nela participou, mas é igualmente importante falar-se de quem a ela fugiu, por que razão o fez e quais as consequências de vida que as suas atitudes lhes trouxeram. Todos estes relatos fazem parte da mesma guerra e contam a mesma história política do país que éramos e da Ditadura que nos amordaçava e oprimia.

Meio século depois do fim da Guerra Colonial (iniciada em Luanda no mês de Fevereiro de 1961, com assaltos à Casa de Reclusão Militar, a uma Esquadra da Polícia, à sede dos CTT e à Emissora Nacional, e continuada com mais veemência um mês depois, a 15 de Março, na região Norte de Angola; já lá vão 63 anos), a nossa sociedade ainda tem dificuldade em tratar o tema desse conflito mantido durante 13 anos entre Portugal e os povos africanos sob jurisdição Portuguesa.

Esta dificuldade mostra o incómodo que para nós ainda é mexer na História e falar dos 90% da população masculina que foi mobilizada; dos cerca de 10 mil soldados mortos em combate; dos 20 mil inválidos e das 100 mil vítimas civis que viviam nas zonas de guerra das três colónias. Sem esquecer um imenso número de ex-soldados que ainda hoje sofrem de traumas de guerra… sendo que muitos deles nem consciência têm do mal que os afecta… mas que facilmente se detecta nos seus discursos.

Nós, Portugueses, nunca quisemos falar abertamente do conflito de modo a espantarmos fantasmas e a retirarmos esqueletos do armário da Política Colonialista do Estado Novo de Oliveira Salazar, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos da América (EUA) com a guerra do Vietname. Nos EUA, editores e produtores de cinema inundaram o mercado com livros e filmes contando histórias da guerra para todos os gostos literários e cinéfilos, servindo todas as sensibilidades políticas e recreativas.

Se a palavra “desertor” é maldita, devemos considerar que muito mais maldita é a palavra “guerra“! Há “guerras patrióticas“, como é exemplo a dos Ucranianos que se defendem de um invasor; e há “guerras criminosas“, como é exemplo a mesma guerra que a Rússia faz invadindo e bombardeando a Ucrânia.

Nós também fomos invasores. A História diz-nos que na sequência dos Descobrimentos Marítimos “invadimos” aqueles territórios africanos… não os “achamos“… as terras tinham donos… eram habitadas por gente autóctone quando lá aportamos (ao contrário da Madeira e dos Açores que eram ilhas desertas e foram, de facto, achadas pelos navegantes João Gonçalves Zarco, Gonçalo Velho Cabral e Diogo Teive, no século XV). Os factos históricos são para ser entendidos à imagem da normalidade das coisas no tempo e no lugar em que aconteceram, sem elogios nem condenações. Mas não podem, nem devem, ser esquecidos, escamoteados, distorcidos ou sobre-valorizados.

Invadir e colonizar território africano, obrigando os seus povos à obediência perante os invasores das suas terras, foi a nossa tarefa na qual incluímos a parte dita mais “sagrada“, mas também uma das mais agressivas: substituir a natural fé religiosa dos africanos pelo Cristianismo que lhes impingimos, contrariando os seus deuses animistas… logo, desrespeitamos e destruímos a sua identidade como Povo detentor de uma Cultura própria, que a Antropologia obriga a ser respeitada e mantida (assim intuímos quinhentos anos depois).

No tratamento deste tema devemos começar por escolher o termo que queremos usar para designar o conflito, porque o entendimento político de cada um ditará a escolha. Há três termos contemplando diferentes sensibilidades para se tratar o mesmo assunto:

1 – Guerra do Ultramar; 2 – Guerra Colonial; 3 – Guerra de África.

As pessoas ditas “politicamente correctas” escolhem o terceiro termo (Guerra de África) porque é inócuo… embrulhado em papel de veludo não belisca portugueses colonialistas, nem africanos nacionalistas; quem o usa, provavelmente, só o faz na tentativa (hipócrita) de ficar limpinho de rótulos políticos.

Os saudosos da política colonialista de António Oliveira Salazar, ligados à extrema-Direita, preferem o primeiro termo (Guerra do Ultramar), por defenderem a política expansionista do ditador que considerava patriótica a frase “Portugal Ultramarino”, na afirmação de que Portugal começava na margem esquerda do rio Minho e terminava em Timor, passando por Macau.

Cá por mim, prefiro o segundo termo (Guerra Colonial) porque Portugal era, de facto, um país colonialista, exercendo sobre os povos colonizados da Guiné, de São Tomé e Príncipe, de Angola e de Moçambique, todas as acções políticas e económicas que os naturais dos territórios, defensores da emancipação, consideravam negativas por lhes serem impostas pelo colonizador, vendo recusada a independência que reivindicavam… daí  terem-se obrigado à luta armada como acção defensiva dos seus direitos independentistas, exigindo emancipação política e económica de Portugal, a qual não conseguiriam sem o recurso às armas.

Após a Segunda Guerra Mundial (1945) a Organização das Nações Unidas (ONU) considerou dever terminar-se com os sistemas coloniais e recomendou aos estados membros possuidores de colónias, que tomassem boa nota dessa recomendação e preparassem os povos colonizados para assumirem a independência. Na verdade, ninguém o fez!… Nenhum povo colonizado recebe a independência em bandeja dourada das mãos do colonizador, sem ter lutado por ela.

O ditador Salazar fez o mesmo… deu “a volta à questão” e transformou as Colónias em Províncias Ultramarinas: Guiné, Angola e Moçambique passaram a ser tão províncias portuguesas como são o Minho, o Alentejo e o Algarve! Deixamos de ser um país “Colonialista” para passarmos a ser um país “Provinciano“! Esta esperteza saloia salazarista, obviamente, não deu bom resultado e estendeu o rastilho que deu início à Guerra Colonial.

Fugir à guerra (a esta ou a qualquer outra) é uma atitude lícita. Mais ainda quando essa guerra é imoral (na verdade, todas as guerras são imorais) na pretensão de se reforçar a propriedade de umas terras que, na verdade, só “são nossas” porque as tomamos para nós… sem as negociarmos com os seus legítimos donos!

A corrente de opinião (em grande número expressa por alguns dos nossos ex-combatentes) que afirma serem os desertores “uns covardes“, peca por não fazer a destrinça entre aqueles que fugiram à guerra por medo e os que o fizeram por atitude política.

Aqui é obrigatório dizer-se que o medo também é razão suficiente para não se querer participar numa luta, seja ela assumida com armas de fogo, a soco ou à pedrada. É lícito fugir dela e o termo “covarde” não pode ser usado como rótulo de um espírito pacífico. Se bem virmos, provavelmente o “perfeito patriota” não é o que foi à guerra colonial… mas sim o que evitou participar nela por a considerar imoral; por isso, desertou! Quem assim procede não pode ser rotulado de covarde. Apenas reagiu conforme a sua consciência política, social e humanitária.

O Partido Comunista Português, que combatia a política colonialista, não incentivava os seus militantes à fuga do serviço militar. Pelo contrário, considerava que deviam ser alistados e seguirem para as colónias como soldados. Só depois, no terreno, deveriam fazer a propaganda anti-colonialista e, se possível, desertar das fileiras do Exército Português para se juntarem aos nacionalistas africanos, levando consigo o armamento que lhes foi distribuído pelo Exército (com mais algum a que conseguissem deitar mão), e lutar ao lado dos nacionalistas, em favor da sua independência.

Eu confesso que não soube fugir à guerra (teria sido covarde?!…) nem antes nem depois de ser incorporado no Exército. Usei outra estratégia. Pensei assim: “já que sou obrigado a ser militar, sê-lo-ei… mas, com a consciência da injustiça da guerra, omitirei os estudos que tenho (que não eram muitos: frequência do terceiro ano de Pintura Decorativa da Escola Soares dos Reis) e só não digo que sou analfabeto porque me vão encontrar a ler e a escrever”. Com esta mentira cumpriria o serviço militar pelo posto mais baixo, como soldado raso. Assim, daria o mínimo de mim àquela causa que não era minha.

Galo 2 Ucua
Viatura Mercedes do Batalhão “Os Galos” com impactos de bala após um ataque dos guerrilheiros nacionalistas na estrada N1 (Dembos) a caminho do Piri, em 6 de Dezembro de 1966, resultando em oito mortos e sete feridos. Direitos Reservados

Coube-me nas sortes a especialidade de condutor-auto com o posto de soldado raso, e foi nessa condição militar que me enviaram para o norte de Angola (Dembos. Exactamente uma das duas regiões [a outra foi Cuanza Norte] onde, cinco anos antes, tiveram lugar as primeiras acções, ainda catalogadas como “terroristas“, da revolta dos angolanos contra os colonos portugueses).

Em conversa com camaradas furriéis, fiquei a saber que pelo menos um deles também não concordava com a guerra… mas não omitiu os estudos, para poder receber mais ao fim do mês do que aquilo que receberia se fosse soldado raso, mesmo que imbuído da vontade de dar o mínimo de si àquela causa do Estado Novo… mas queria receber o máximo!… (Curioso, não é?!…).

Depois… tive o meu “baptismo de guerra” uma semana após chegar ao mato, vivendo noites de intenso tiroteio. Então, decidi fazer pela vida… morrer não era coisa que me seduzisse!… Deixei de “meter pedrinhas na engrenagem” e acabei por pertencer à Acção Psicológica, produzindo um jornal (A Capoeira) e participando num conjunto musical (Os Galos) cantando, fazendo ilusionismo e “Stand up Comedy” (modalidade de comédia que, então [1966], ainda não existia) levando música e alegria aos militares e à população civil numa imensa região do Norte de Angola, desde os Dembos até ao território do Zaire.

Iniciei a condição de soldado com total desprezo pela vida militar, o que me valeu uma condenação de quatro dias de cadeia, no CICA 1 (Porto), que cumpri. Quando regressei de Angola… trouxe três louvores.

Onofre Varela na tropa
Fazendo Stand Up Comedy na festa do 1º Aniversário da presença do nosso Batalhão (o Batalhão dos Galos) no norte de Angola. Úcua, Janeiro de 1967. Direitos Reservados

No meu Batalhão morreram 14 camaradas, a maioria em combate; dois em acidente de viação e um suicidou-se. Tive de participar na autópsia da primeira vítima, o que não foi tarefa fácil porque ele era mais do que camarada de guerra… era amigo.

Conto toda a história da minha experiência militar, desde a recruta até às matas dos Dembos e à região do Zaire (onde fui rendido pelo Paco Bandeira), mais o regresso à Metrópole (como se designava Portugal enquanto país colonizador) no livro: “191 – Memórias de um soldado em Angola“, com prefácio do meu camarada do Jornal de Notícias e historiador do Porto, Germano Silva.

Editado pela extinta editora Verso da História em Novembro de 2016, o livro é comercializado pela Book Cover Editora, e pode ser pedido nas melhores livrarias. Está ao preço da chuva… e já ouvi alguém dizer que, pelo seu conteúdo e pelo modo como um ex-soldado conta o que viveu sem tomar partido por nenhuma das partes envolvidas no conflito, ele devia fazer parte do Plano Nacional de Leitura… mas não faz!…



- Publicidade -spot_img

Mais artigos

- Publicidade -spot_img

Artigos mais recentes

- Publicidade -spot_img