“O Cidadão” esteve à conversa com quem melhor poderia falar-nos da história dos Boémia e, em especial, de “Génese”, o último álbum, editado há pouco e que pode ser escutado nas principais plataformas. Os nossos interlocutores foram o Rogério Oliveira – voz, letras e composição musical – e o Marco Ferreira – piano, coros, composição musical e arranjos.
Boémia é um nome sugestivo, lembra aqueles tempos de faculdade em que, tão importantes quanto as aulas, eram as conversas, noitadas, madrugada dentro; bem “regadas” , como convinha, em que se discutia, num grupo de amigos, tudo o que pudesse ser lembrado e imaginado. Até os sonhos tornavam-se (quase) reais. E a origem dos Boemia não podia fugir muito desta realidade. O Marco Ferreira deu o mote.
“A banda surge de um grupo de amigos, ainda em idade de liceu, que se aproximaram, precisamente pela tertúlia, esse lado da “boémia”, donde surge o nome – Boémia. Discutiam-se, essencialmente, gostos musicais, música e onde predominavam nomes como o Fausto.”
As sonoridades de Fausto Bordalo Dias, esse nome grande da música portuguesa, “sentem-se” com toda a intensidade nas músicas dos “Boémia”.
“Sim, do Fausto, mas também de outros, como os “Trovante”, José Mário Branco, Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Jorge Palma e muitos outros músicos de raiz popular portuguesa”.
E em 1999, das palavras, das tertúlias, os Boémia passaram aos atos.
“Este gosto pela música portuguesa leva-nos a querer fazer a nossa própria história e escrever a nossa página no panorama da música nacional.”– Explica Marco Ferreira. E continua “Gravámos o primeiro disco -Madrigal – em 1999 pela editora Ovação.”
A qualidade foi sendo apurada
E foi preciso esperar até 2003 para termos o gosto de ouvir novo disco dos Boémia.
“ Em 2003, gravámos o álbum “Semente”, com a editora Zona Música. Teve a participação de Fausto, Luis Represas e Luis Pastor; a produção musical foi de Enzo D’Aversa”.
E Marco Ferreira continua a explicar o rumo da banda, que em 2011 voltou a apresentar mais músicas.
“Foi o álbum “Peregrinos do Mar”, em 2011. Tem como tema os descobrimentos portugueses e a era quinhentista. Vai beber da influência que a obra de Fausto marcou nos Boémia, tendo o próprio músico participado num tema. Este disco contou ainda com a Amélia Muge e o Joaquim de Almeida. Foi edição de autor com o apoio da Antena 1.”
Em 2023, outro tema forte – os 50 anos do 25 de Abril… em “Génese”
“Chegámos a “Génese”. Nele contamos alguns episódios mais marcantes desde o Estado Novo até ao 25 de novembro de 1975.” – conclui Marco Ferreira.
O álbum “Génese” tem participações especiais de Fausto, Zeca Medeiros e José Salgueiro (na produção musical).
Entretanto, Rogério Oliveira completa e resume o que levou à concretização de “Génese”.
“Todos estes acontecimentos que retratamos no álbum são a génese da nossa constituição atual. E Estas 14 músicas são representativas da nossa génese musical”.
Apesar das colaborações “de peso” que os Boémia convidaram para o álbum “Génese”, todos os temas pertencem à banda. Quanto às participações especiais, o Rogério esclarece.
“Para o tema “Zira”, convidámos o Fausto para cantar comigo; este tema fala do processo da reforma agrária, da formação das cooperativas, da Lei Barreto, etc. Assuntos que foram sempre muito polémicos. Convidar um cantor para cantar este texto tinha de ser alguém que não tenha pudor em fazê-lo. O Fausto tem uma canção “Lembra-me Um Sonho Lindo” que, de outra forma, também aborda a reforma agrária. Logo, a escolha da canção para ele participar foi fácil.”
Convém que tenhamos a noção clara de que os Boémia cantam sobre um dos momentos mais importantes da História Contemporânea de Portugal, o 25 de Abril. O famigerado “PREC” e os mais ou menos complexos acontecimentos que tiverem lugar até ao 25 de novembro. Eles que, como diz o Rogério Oliveira “Somos todos filhos da liberdade, nascemos na década de 70, depois de 74 “. Uma das canções repesca um acontecimento deveras controverso. Que tem, também, uma participação muito especial – Zeca Medeiros.
“Aborda o 11 de março! E a teatralidade da voz do Zeca Medeiros é perfeita para ilustrar esta história.” – esclarece Rogério Oliveira
Realmente, teatralidade e logro não falou nesse dia, 11 de Março, em que os militares- enganados – começaram por participar num golpe contrarrevolucionário e, depois, apercebendo-se do embuste, renderam-se aos seus camaradas e mudaram para o outro lado da “barricada”… Voltando à música…
“Nós já seguíamos o trabalho do Zeca Medeiros” – explica Rogério – “com muito interesse e há muito tempo, mas não o conhecíamos pessoalmente; quando eu estava a escrever esta letra, há uma frase que me lembra o Zeca Medeiros e, de imediato, surgiu a vontade de o convidar para a cantar comigo” –conta Rogério Oliveira
Como já referimos, as sonoridades do Fausto são evidentes nos temas dos Boémia. Já o Marco Ferreira tinha referido . Rogério Oliveira vai ainda mais longe nessas referências
“A música do Fausto tem uma enorme importância no nosso trabalho. Quando começámos a ouvir esta música, a popular, já a encontrámos transformada pela mão do Fausto. Existe uma música popular antes do Fausto e uma outra depois. E foi essa, a nosso ver muito mais interessante, que quisemos ter como ponto de partida para trilhar o nosso próprio caminho. O Fausto é mais do que uma inspiração, é o nosso grande Maestro!” – refere
“Intervenção, não. Protesto!”
Quem viveu o período histórico que os Boémia contam e cantam neste álbum ,“Génese”, pode lembrar-se do que ouvia na rádio, logo após o 25 de Abril de 1974; entre os comunicados da Junta de Salvação Nacional e, depois do MFA, lidos pelo saudoso Raul Durão, e também por outros, como o Joaquim Furtado, vinham as músicas de intervenção. E tantas existiram. Tantas!
Rogério Oliveira, desfaz a ideia de que os Boémia são (os novos) cantores de intervenção, referindo a diferença entre realidades dessa época, tal como as músicas.
“Essa música de intervenção teve uma função e um tempo próprio no PREC. Era uma música urgente, muitas vezes feita de véspera e apresentada no dia seguinte e de uma forma absolutamente solidária. Muito se deve a esses artistas que comprometiam a estética da sua arte e palmilharam o país em condições inacreditáveis hoje, pela urgência da mensagem; e eram excelentes músicos e compositores. Houve uma tentativa, nada inocente, de ridicularizar e apagar os chamados cantores de intervenção. Arrumá-los numa caixa.” – Explica.
Seria, pois, desajustado, chamar à música dos Boémia, o novo canto de intervenção?
“Sim, agora a música é de protesto, que é outra coisa! Muitos desses músicos continuam a criar verdadeiras pérolas na música e a inspirar as novas gerações. A arte deve servir para informar, alertar e incomodar. Além do lado lúdico, do prazer e da beleza. É assim que entendemos a música.”– esclarece.
Haverá hoje necessidade, outra vez, de tornar a “cantiga numa arma”, embora de forma diferente? Rogério Oliveira acha que sim, embora de modo diverso.
“Se pensarmos no que está hoje a acontecer – o grave problema da habitação, a ameaça constante ao SNS, o mundo em conflito e os extremismos a ganhar terreno – é natural que surjam novos cantores e grupos com canções de protesto. Pudéssemos todos só falar de amor e contemplação!…. “
Nas velhas cantigas de intervenção, os seus autores eram, quase todos, músicos engajados, sectários. A ideologia estava na ordem do dia e todos, ou quase, militavam em partidos de esquerda e extrema-esquerda. Este fenómeno tem de ser analisado à luz da época e não à de hoje. Rogério Oliveira explica bem essa diferença.
“A defesa dos valores sociais é a base que nos une enquanto grupo. A nossa filosofia comum é o Humanismo. Em relação a filiações partidárias, acho que nenhum de nós os sete tem. Agora eu, pessoalmente, não me sito menos benfiquista por não ter o cartão do clube nem me faz duvidar da minha cor. O facto de estarmos profundamente ligados à vertente humanista, ela transpira para a nossa música.”
Divulgação e apoios
O consumo da música sofreu alteração profunda. É natural que os Boémia sintam essa dificuldade. É assim, Rogério?
“ A venda de discos é cada vez menor, mais vai-se vendendo alguns, porque as pessoas identificam-se com as histórias que as canções contam. Um álbum é um cartão de visita bastante caro! Para recuperar investimento, os concertos ao vivo são fundamentais. Este álbum teve o modesto apoio do fundo cultural da SPA e os apoios institucionais da Antena 1 e da Associação 25 de Abril. O disco foi gravado no excelente estúdio do Rui Veloso pelo Fernando Nunes e a produção musical do José Salgueiro. O disco é produção nossa e entregámos ao Alain Vachie o agenciamento para seguir caminho.”
E concertos, já há?
“Estão a ser agendados e existem algumas datas marcadas para 2024, mas aguardamos convites para levar este álbum ao vivo por todo o país. É um concerto que não é só para o 25 de Abril. É festa e toada popular que fala de histórias reais de uma geração ainda bem próxima que as pessoas vão identificar.”
Mas a divulgação plena não é fácil; têm de ser abandonados alguns meios tradicionais para chegar a toda a gente?
“É importante estar em todas. Plataformas, rádios, imprensa escrita e televisão. Mas tudo passa por critérios editoriais muito condicionados. Existem cada vez menos programas de autor e artigos de opinião, o que dificulta a divulgação de tudo o que não seja considerado “moda”. A cota obrigatória da música portuguesa é essencial nesta fase para ajudar a equilibrar a balança totalmente desequilibrada, ainda que seja mínima. A grande divulgação da música anglo-saxónica em Portugal e no mundo não é só feita por questões de estética ou gosto. É sobretudo uma tarefa colonizadora ao serviço de mercados financeiros e pensamentos globais. É que a música, como outras artes, vende tendências, formas de estar, pensar e consumir. E vender tudo isto para o mercado global dá imenso jeito! E quem fica a perder é a cultura de cada país e o pensamento individual. Por isso, o conceito de programa de autor e o artigo de opinião serem uma resistência preciosa para difusão da cultura deste ou de outro país”- responde Rogério Oliveira
Os Boémia
Rogério Oliveira (Voz, letras e composição musical)
Marco Ferreira (Piano, coros e composição musical)
Hélia Silva (Acordeão)
Isa Peixinho (Fluta transversal e coros)
Patrick Simeão (Bateria)
Jorge Anacleto (Guitarras e coros)
Ricardo Duarte (Baixo elétrico)
José Salgueiro (Produção Musical) – participação no álbum “Génese”
“Génese”
O álbum “Génese” pode ser adquirido em Lisboa, na Associação 25 de Abril ou através do site: avmmusiceditions.com
Jornalista