Para entender este caso, é necessário, em primeiro lugar, compreender o que é a eutanásia. A eutanásia visa abreviar a vida de um paciente em estado terminal ou que esteja sofrendo continuamente com dores intoleráveis sem possibilidade de cura.
Ela ocorre quando existe a vontade do paciente; quando o tratamento da doença não pode ser suportado financeiramente pela família do paciente (eutanásia económica); ou quando os pacientes representam uma ameaça para a sociedade (eutanásia eugénica). O caso desta jovem paciente reúne os três motivos.
Esta jovem paciente chama-se Democracia. Ela nunca chegou a caminhar, nem sequer a ter a autonomia desejada, e neste momento encontra-se moribunda. Devemos estar cientes de que ela é uma doente “verdadeiramente terminal” e que continuar com os tratamentos paliativos para prolongar sua vida com o mínimo de conforto é adiar o inevitável.
Seu quadro clínico é apresentado no relatório do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Social (International IDEA), com sede em Estocolmo. O relatório revela que mais de dois terços da população mundial vivem, neste momento, em democracias em retrocesso ou em regimes autocráticos. Para piorar a situação, a pandemia da COVID-19 trouxe um conjunto de medidas de contenção desproporcionadas, desnecessárias e inconstitucionais, que enfraqueceram drasticamente a paciente, revelando como a transição para a ditadura pode ser imediata e dolorosa.
Infelizmente, é possível ver que o carcinoma desta paciente já invadiu todos os órgãos vitais para sua sobrevivência, originando metástases. A justiça, o legislativo e o executivo estão comprometidos, dezenas de investigações judiciais revelaram problemas graves de corrupção envolvendo juízes, deputados e altos responsáveis políticos, demonstrando a falha constante do sistema judicial em garantir o bom funcionamento da saúde, da educação e da segurança, provocando seu iminente colapso.
“As democracias já não se desmoronam mediante uma revolução ou golpe de Estado, caem aos poucos, através do enfraquecimento das instituições fundamentais, como os tribunais e os órgãos de comunicação social, e do desgaste gradual de normas políticas de longa data.” – do livro “Como Morrem as Democracias“, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.
O definhar desta criança é tão angustiante que o casamento (ou união) de seus criadores (o Povo) está por um fio. A simples esperança de recuperação ou a falta dela, o tipo de tratamento (tipo de políticas) a aplicar, ou a escolha da equipa médica (partidos políticos) e dos especialistas (órgãos de comunicação social) são causas mais do que suficientes para as partes se fecharem em suas convicções e não estarem dispostas ao diálogo.
O Povo nunca esteve tão polarizado, e quando a sociedade se divide em dois grupos radicalizados e ambos começam a não se tolerar, é porque a Democracia ligada às máquinas já morreu.
Mas se pensarmos bem, o verdadeiro problema nem está na polarização, mas sim nos actos de bloqueio ou censura que uma das partes faz com a outra, cerceando argumentos e matando o diálogo. O que é a polarização senão a nossa visão pessoal sobre um assunto comum, que pode ser ajustada conforme a liberdade de argumentação de todas as partes?
Após o 25 de Abril, quando nasceu a Democracia, mas antes do desenvolvimento e popularização da Internet na década de 1990, não existia uma sociedade antagonizada defendendo perspectivas diversas. Isso era o resultado natural da escassez de fontes de informação (quase todas nacionais) e uma informação filtrada e de pouca variedade, semelhante ao que ocorre em países autocráticos ou ditatoriais. Não existindo pontos de vista diferentes, facilmente se aceitava um só tipo de cura para a recém-nascida e enferma Democracia, o que se revelaria catastrófico.
Com o advento da Internet e das redes sociais, o Povo passou a ter acesso ilimitado a todo tipo de informação, a compartilhar seu conhecimento e a expressar livremente sua opinião. Esta era a cura que os progenitores da Democracia sempre desejaram para sua filha. Foi esse, de facto, o melhor momento da Democracia, pois parecia ficar cada vez mais forte, mais saudável, e seu futuro parecia promissor. No entanto, quando os especialistas em “saúde democrática” (órgãos de comunicação social e partidos políticos) perceberam que haviam perdido o monopólio do tratamento e que sua função estava sendo questionada, resolveram iniciar o ataque.
Um dos grandes nomes do Renascimento, o filósofo e político italiano, Nicolau Maquiavel, em seu tratado “O Príncipe”, recomenda aos poderosos que “…caso seja necessário, façam uso de recursos injustos para se manterem no poder…” e “…as ofensas devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para que sejam melhor apreciados.”
Os tipos devem ter lido sua obra e facilmente perceberam que, para voltar a controlar o destino da Democracia, teriam apenas de manipular os assuntos da Internet, patrocinando temas e causas controversas, que apenas uma pequena parcela da população defendia. “Divide et impera”, dividir para reinar, é de facto a melhor técnica que os poderosos possuem para controlar as populações ou facções de diferentes interesses que, juntas, poderiam ser capazes de opor-se ao seu governo.
O resultado foi ter minorias subjugando sociedades inteiras, fazendo-lhes lobotomia religiosa, cultural e de costumes, desconstruindo a história e os símbolos, assassinando a língua, e atribuindo-nos os crimes e abusos de nossos antepassados. A seguir, com a desculpa de que é necessário controlar a crescente e descontrolada polarização da sociedade porque ela favorece a ascensão de líderes populistas com pouco apreço às normas democráticas e às limitações de poder, a Internet começou a usar o lápis azul dos poderosos.
Em entrevista a uma revista brasileira, a jornalista americana e historiadora, premiada com o Prémio Pulitzer, Anne Applebaum, disse: “Já chegou a hora de encarar a necessidade de uma regulação pública das redes. Não se trata de remover ou censurar conteúdos, mas de apoiar um crescente movimento pela adequação dos algoritmos das plataformas ao interesse público. Hoje, a lógica das redes é dar relevância a qualquer conteúdo que traga engajamento, e por isso viraram o paraíso das “fake news” e dos discursos irracionais.“
https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/chegou-a-hora-de-regular-as-redes-sociais-diz-anne-applebaum/
É um fato que, se as fontes de informação forem conspurcadas com “fake news,” manipulação jornalística e narrativas fabricadas, o Povo pode não conseguir visualizar correctamente a verdade. No entanto, como sempre existe a possibilidade de a verdade ser exposta, descredibilizando os mentirosos e, se necessário, puni-los sob a égide da justiça, a proposta de uma espécie de “Polícia Internacional e Defesa do Estado” para impor limites às manifestações das pessoas é um claro meio de cerceamento das liberdades individuais, configurando censura prévia e só pode ser considerada uma grosseira tentativa de ultrapassar os limites dos direitos individuais assegurados pela constituição. Até porque nem sempre se sabe onde começa e termina a verdade.
As plataformas de compartilhamento de conteúdo, como o YouTube, o Facebook ou o Twitter, devem ser vistas como meras auto-estradas de livre comunicação, não como órgãos de comunicação social iguais às televisões, rádios ou jornais. Naturalmente, elas devem ter regras (o cumprimento da constituição é uma delas), mas jamais podem ser as empresas proprietárias dessas plataformas a restringir o que pode ou não ser dito. Somente a justiça pode fazê-lo.
“Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.” – Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Artigo 19.
O que está acontecendo é tão preocupante para a Democracia que estou convicto de que não podemos fazer mais nada por sua sobrevivência. Os limites à liberdade de expressão estão sendo criados, quem não aceita as narrativas oficiais dos poderosos está sendo rotulado de extremista/negacionista/fascista, e só falta colocar-lhes uma braçadeira como os nazis fizeram aos judeus para serem identificados. Com essa loucura que está acontecendo no mundo, o avanço dessa agenda que prega cada vez mais estado, mais impostos, menos liberdade, mais censura, a luta pela Democracia está sendo perdida.
Esta jovem paciente chamada Democracia, que nunca deixou de gatinhar, está moribunda. Rezemos todos por ela, porque talvez seja melhor desligar-lhe as máquinas!

Servo da República