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Sábado, Dezembro 14, 2024

Eu não sou deste mundo!…

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Onofre Varela
Onofre Varela
Jornalista/Cartunista

Vou fazer uma confissão: sou um “auto-info-excluído”. O meu telemóvel não custou mais de quarenta paus, não tem Internet, não guia o meu carro por satélite (em viagem uso o mapa das estradas do Automóvel Clube de Portugal), nem faz os malabarismos que se encontram nos telemóveis que têm tudo… só lhes falta fazer pataniscas e bolinhos de bacalhau, servir copos de vinho tinto e tirar cimbalinos. Sinto um total desprezo por máquinas, começando nas de lavar louça e terminando nos computadores.

Há dias entrei num café da baixa portuense e a menina a quem pedi um café disse-me para meter a nota de cinco euros que eu tinha na mão, na ranhura de uma máquina que se encontrava fixada no balcão, a qual me daria o troco e só depois me entregava o cafézinho que eu tinha pedido e que tomaria naquele mesmo balcão, em pé, porque ali não havia mesas nem cadeiras!…

Respondi que ficasse com o café para outro cliente que fosse fã de filmes de ficção-científica, que eu ia gastar os meus cinco paus num Bar de cowboys numa fita do Far-West.

Saí dali e entrei num café normal para ser atendido por uma pessoa normal a quem paguei normalmente e trocamos umas palavras normais na normalidade que costuma ser a minha vida desde que me conheço. Não ambiciono outro modo de viver… este que uso, sem me submeter a máquinas sofisticadas e falando com as pessoas (que são todas minhas iguais… incluindo o Papa e o Presidente da República), serve-me na perfeição, dá-me felicidade e basta-me!

Quando fui trabalhar para a Empresa do Jornal de Notícias, há mais de 40 anos, estava-se a iniciar a técnica de computador para produzir o jornal Notícias da Tarde, para o qual fui contratado como maquetista gráfico (Designer, como passou a ser bonito dizer-se, na mania podre de um servilismo linguístico que nos leva a desprezarmos a nossa língua para usarmos a inglesa).

Um dia mandaram-me para a “sala dos computadores” a fim de me iniciar na computação, e sentaram-me à frente de um teclado e de um pequeno ecrã no centro de uma caixa quadrada… a mim!… A mim, que para trabalhar só uso papel, lápis, pincel, caneta, tinta da China, tira-linhas, compasso, rotring, guache, aguarela, papel, tesoura e cola?!… Menos de uma hora depois já sentia pele de galinha… juro que tentei continuar por lá, mas aquilo não me dizia nada e saí dali antes que começasse a cacarejar e a cagar ovos!

 

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Senti-me D. Quixote perante “aquilo”


Voltei para o meu estirador e escrevi este recado que pendurei na parede: “Se eu tivesse aptidão para as teclas, era pianista”. Se calhar, com muito estudo e treino (como se faz com cães e cavalos), poderia dar num Mozart (mal comparado…) mas nunca seria um Macintosh.

Até nos parques de estacionamento me presenteiam com as estúpidas e mudas máquinas para pagar o tempo em que lá deposito o carro! Salva-me o facto de ter aderido à Via Verde…

Há muitos anos (antes da moda das máquinas de pagamento automático) fui cliente de um desses espaços subterrâneos para aparcamento que existe ao lado da Igreja dos Clérigos, quando tive ateliê de desenho e pintura no centro histórico do Porto – rua Arquitecto Nicolau Nazoni – na zona dos Caldeireiros, durante mais de duas décadas.

A menina da caixa era de uma simpatia desusada! Tinha uns lábios carnudos, bem desenhados a vermelho vivo, e uns olhos espectacularmente maquilhados. Sorria para os clientes com uma imaculada alvura de dentes, como se aqueles apressados depositadores de carros no parque fossem as melhores pessoas do mundo… e eu gostava daquele tratamento.

Porque trato bem as pessoas com quem me relaciono, também gosto de receber tratamento idêntico. Sentia-me importante e retribuía-lhe, com sorrisos e palavras, o mesmo sentimento de importância que dela recebia.

Repentinamente, de um dia para o outro, a menina transformou-se radicalmente! Passou a atender-me com cara de luto carregado, sem mostrar os dentes, e a ter ao seu lado uma jarra com um espampanante ramo de flores diferente em cada dia. Espampanante e caro… a avaliar pelas exóticas espécies florais!… E a maquilhagem tornou-se mais leve… muito leve… quase despercebida.

Percebi o que se passou. A menina viveu um período de “pesca-de-homem”. Mordido o isco por um dos clientes do parque, recolheu a linha de brancura dental e guardou a cana de pesca simbolizada no olhar penetrante. Pouco tempo depois desapareceu daquele guiché. O homem que ela “pescou” sabia do isco apetecível que ela era. Os sorrisos e as falas ternas que o prenderam, não foram dirigidos, apenas, a si… mas a todos os clientes da produzida menina… por isso era um perigo mantê-la em frente ao cardume da concorrência!

Esta transformação repentina só acontece no atendimento humano; nunca nas máquinas de pagamento automático. As máquinas só têm a segunda versão, a do atendimento no estilo fúnebre. São frias e despersonalizadas como é comum serem as máquinas.

Cá por mim, mesmo correndo o risco de poder ter à minha frente um sorriso luminoso, refulgente e resplandecente hoje, e um rosto cemiterial, lúgubre, sombrio e tétrico amanhã, prefiro a cambiante das relações humanas pela riqueza que têm. São bem melhores do que a máquina estúpida e insensível que não barafusta contra as condições de trabalho, que não pede aumento de ordenado, que não discute horários, que não é sindicalizada, que não adoece, que não engravida, que não faz greve… e que não é capaz de reconhecer uma flor, que não se enamora por um cliente… nem se comove com um poema!…

As máquinas são do piorio!…

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