“Quem tem ética passa fome”. Esta é uma afirmação proferida há quase duas décadas por alguém que foi considerada a rainha do ‘telelixo’ dos media (entretanto já substituída), mas que acabou por conquistar o público, vencer na televisão generalista nacional e, dizem, ganhar milhões.
Para Teresa Guilherme, na vida – e no mundo do “entertainer” mediático – não há qualquer limite ético, na medida em que a ética não pode contrariar o que toda a gente quer. Deste modo, emerge a questão: afinal, o que é a ética?
O significado da ética não é óbvio, cabe em muitos pontos de vista pessoais/individuais. Há pessoas que a identificam com os seus sentimentos, outras com as leis ou normas (mas ser ético não é mesmo que cumprir as leis), outros ainda com a religião e, por fim, para muitos ser ético é fazer o que a sociedade quer e/ou aceita, o que corresponderia a equiparar a ética a um ‘parecer da maioria’.
Perante esta diversidade de opiniões, persiste a pergunta: o que é então a ética? Segundo o filósofo espanhol Fernando Savater, a ética trata do sentido e interrogação sobre o uso da nossa liberdade, pois ao contrário dos demais seres naturais, nós não estamos programados pela natureza. Eles não têm mérito, mas também não se enganam; nós, pelo contrário, decidimos e, portanto, podemos enganar-nos porque não estamos programados.
A ética refere-se assim, a princípios, normas, critérios, mas também ao estudo e desenvolvimento das próprias obrigações, sentimentos, leis e normas sociais que se podem desviar daquilo que é a moral, e têm de ser examinados para garantirem que são razoáveis e fundamentados (Henriques, 2019).
No presente, e face décadas de assíduas notícias, o apelo à ética é um recurso muito usado pelos dececionados com a política e seus diversos agentes ou atores. A palavra política ganhou conotações negativas: “sugere algo enganador, corrupção, dogmatismo e ineficiência” (Daniel Innerarity, 2015). As relações entre ética e política são hoje um tema de viva discussão, pois as crises económica, política e ideológica – e a nossa atual e necessária sensibilidade perante a corrupção – alterou a atenção e perceção perante a gestão, sobretudo da coisa pública, mas que também podemos estender à atividade política, nas empresas e instituições privadas.
Aquilo que era ignorado e tolerado em épocas de “bonança” (o “deixa-andar”), depois da austeridade e dos efeitos da crise financeira, económica e social da última década, é agora intolerável e insuportável, melhor, criminalizado ou, pelo menos, mediático e socialmente reprovado (por enquanto!).
Em Portugal continental – mas também na Região Autónoma da Madeira – durante anos assistimos a uma quase total permissão da corrupção: são exemplo disso, práticas banais como a “cunha”, o pequeno favor, as ofertas, as recompensas por serviços prestados, o tráfico de influências, mas também as contas ‘marteladas’, os concursos públicos ‘feitos à medida’, as populares adjudicações diretas, os júris de conveniência, as obras públicas sobreorçamentadas, as falsas licenciaturas, as famosas viagens (e reembolsos) dos deputados das Regiões Autónomas, as ‘falsas’ moradas e presenças dos deputados na Assembleia da República e, numa escala ainda maior, os contratos leoninos que só ressalvavam interesses de uma parte (os privados), em prejuízo da outra (o público) – as famosas PPPs rodoviárias e ferroviárias –, a gestão dolosa e danosa de instituições financeiras nacionais, entre tantos outros caso, etc., não esquecendo, por exemplo, o célebre escândalo revelado no relatório final de uma auditoria ao banco do Estado – a Caixa Geral de Depósitos –, mais um negócio ruinoso, e no qual ficamos a saber que este concedeu empréstimos de milhões que não foram pagos, sem quaisquer consequências para os devedores e responsabilidades para quem os validou.
O autor italiano Umberto Eco, escreve a este respeito que “hoje em dia, quando surgem nomes de corruptos e burlões, as pessoas já não se importam com isso; só vão para a cadeia os ladrões de galinhas”.
Ora, os portugueses acreditam que a corrupção é o principal problema do país (e regime) – aliás, o próprio ex-ministro da Economia e do Emprego, agora diretor da OCDE, Álvaro Santos Pereira, afirmou mesmo que foram as “políticas erradas, a corrupção e o compadrio entre a política e os privados que nos levaram à bancarrota” de 2011, e, mais recentemente que “quem questiona que o país tenha sido vítima de corrupção, está a questionar o inquestionável” – contudo, os números oficiais mostram que o volume de processos sobre corrupção é ainda diminuto quando comparado com a perceção da corrupção obtida através dos media.
Em suma, no quadro atual, infelizmente, instalou-se em Portugal uma visão e avaliação negativa relativamente a quase tudo o que acontece no espaço público. Há um desgaste das instituições e um crescendo desfasamento entre as exigências dos cidadãos e o estilo de atuação da classe política – até porque esta rege-se por uma lógica e tacticismo de curto prazo, os ciclos eleitorais (e depois de mais uma dissolução do parlamento, temos mais uma eleição no primeiro trimestre de 2024). Há carência de uma ética pública, de um conjunto de critérios, práticas e instituições que regulem aquilo que não é delito, mas que não está certo, que não é politicamente nem moralmente aceitável.
Mas há riscos: o de passarmos do laxismo, dos “brandos costumes”, do “tudo natural” e da “serenidade” que dizem caracterizar o povo português ao polo oposto, que seria o da judicialização da política, um assunto deveras relevante, mas para outra reflexão.
Professor do Ensino Secundário