Os jogos de futebol disputavam-se às três horas da tarde, sob sol inclemente ou chuva a cântaros. Assim era o Campeonato Nacional no meu tempo de criança. Comecei a ver jogos, nos estádios, a partir de 1966, e não me parece que até aos anos 80 tenha havido substancial progresso.
Nesses tempos, os clubes podiam utilizar os seus campos e não era obrigatório serem relvados. Cada um usava o que tinha. Alguns pelados na “primeira”, lembro-me do “Padinha”, em Olhão, terreno do Olhanense, do Oriental, Montijo, Riopele, Gil Vicente, Rio Ave, Académico de Viseu (um piso que até cortava!), União de Coimbra (Campo da Arregaça), Vizela, Penafiel, entre muitos outros. Já conheci relvados os terrenos do Beira-Mar, Académica, FC Porto, Sporting, Benfica, Belenenses, Cuf, Vitória Sport Clube, Vitória Futebol Clube, Braga ou Atlético. Havia, assim, muitas partidas disputadas em autênticos lamaçais, em que o futebol era força, querer, determinação. E emoção, sempre.
os espetadores que não tinham dinheiro para as frágeis bancadas cobertas, protegiam-se com os guarda-chuvas ( sim, podíam levar para o campo); às vezes, o vento era traiçoeiro e partia o abrigo. Ficavam assim, a levar com a chuva na “moleirinha” até o fim. Desistir do jogo é que não…
Com o sol forte, a partir do meio do mês de março, acabava por ser menos agreste; nas imediações, andavam os vendedores de chapéus de papel, feitos das caixas das camisas. Ainda hoje recordo a ladainha “é prò sol, chapéu prò sol…”, tal como “tremoço! Amendoim! pevides!” e “é a bandeirinha, a bandeirinha…”. Podíamos entrar com as nossas bandeiras. Às vezes, havia confusões, e se as havia!.. O que não existia eram claques. Nem se sonhava com tal coisa!
As equipas não entravam no campo como hoje. Faziam-no, uma de cada vez; a da “casa” era aplaudida e a adversária “assobiada”. O trio de arbitragem (não havia quarto árbitro), sempre recebido com impropérios e muitas, muitas vaias.
Esta crónica é dedicada a um velho colega de liceu, em Aveiro, nos anos 74, 75, 76 e 77, o ZT. Havia grandes torneio de futebol nos liceus, nesse tempo. E campeonatos entre as escolas. Tudo muito bem organizado pelos organismos juvenis de então. Iam-se buscar os colegas do futebol federado para reforçar o liceu e assistia-se a jogos de bola com muita qualidade. Bons jogadores! E muitos “brinca na areia” que davam o mote criativo, sempre de saudar. Com árbitros, obviamente. E o ZT era árbitro. Nunca quis jogar, mas sempre arbitrar. E era competente! Rigoroso, impositivo e justo.
Lembro-me de uma vez estarmos a lanchar a sandes que trazíamos de casa (outros tempos!), sentados no chão e encostados ao troco grosso de duas frondosas árvores, trocando impressões sobre arbitragem. Se era atividade que eu me recusava a exercer, o ZT, adorava. E eu quis saber a razão do amor a uma atividade tão complexa. E o ZT não foi de modas:
“ Ó Jorge, é o que eu mais quero. Ser árbitro na Primeira Divisão. Entrar com os meus fiscais de linha, sob os apupos do estádio todo. Chamarem-me “filho da p###”, #cabr##”, “ladrão”, #compra uns óculos, ó filho da p###”., “vai roubar o car####”. É top, pá! O máximo!
Fiquei de queixo caído. Mas essa espécie de masoquismo dava-lhe estímulo. Depois de terminarmos o Liceu, nunca mais o vi. Não sei se continuou fiel a esta ideia de arbitrar e ser insultado. Tinha fibra e poder de encaixe. Era forte. Se não se dedicou, é pena. Perfil não lhe faltava, assim como habilidade e gosto.
Rematemos esta crónica, ainda no campo dos insultos e dos árbitros. Não há muito tempo, assisti a um jogo dos campeonatos distritais do Porto. A primeira parte correu mal aos da “casa” e o público não poupou a arbitragem. Foi fortemente contestada nos moldes habituais. O ambiente esteve feio.
Porém, ao intervalo, foi dada ao juíz da partida, uma notícia demasiado cruel – a morte do seu pai (só soubemos no fim). Ficou sem condições de “apitar” a segunda parte e, conforme os regulamentos, a organização do jogo, através da cabine de som, questionou se entre os espetadores haveria algum árbitro ou alguém disponível para o papel de “liner”. Duas, três, quatro vezes. Ninguém teve coragem para assumir e ir lá para dentro do campo. Com muito tempo de interregno, apareceu um jovem, deu o corpo ao manifesto e foi ajudar a arbitrar a segunda parte.
Curiosamente, a partida correu tranquila, os adeptos foram apoiando as suas equipas. Assobios ao árbitro? Zero! Um civismo desconcertante num jogo de futebol.
Foi preciso uma tragédia para os espetadores da bola entenderem que ser árbitro é uma tarefa difícil e nem todos são capazes de a exercer. Nem a dar uma pequena ajuda junto à linha lateral, quanto mais.
Esta crónica é dedicado ti, ZT, estejas tu onde estiveres.
Jornalista