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Sábado, Setembro 7, 2024

Entre laços e aromas : À memória dos outonos – Por Rosa Fonseca

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Rosa Fonseca
Rosa Fonseca
Professora e Escritora

A memória é um refúgio ao qual voltamos sempre que somos convocados. E convocam-nos as saudades, os lugares, as casas e os afetos, mas também, todas as coisas recuperadas. Tudo que faz de nós o que somos no presente. Por isso, gosto de pensar que somos navegantes de vários mares. Caminhantes de muitos chãos.

E hoje, volto em visita à casa, à mãe, à terra. À memória dos outonos.
Volto aos lugares de sossego.
E é neste voltar que me reencontro. Com os meus, com os nossos.
A casa tem hoje um aroma entre o cítrico e o açucarado dos dias de um outono a começar. Cheira a fruta madura, a terra e a marmelada. Cheira à infância.
Ainda cheira a mar e sol – nos seus finais de glória.

Na cozinha uma luz coada e os salpicos buliçosos, espalham-se pela colher de pau e ladrilhos. Os marmelos a desfazerem-se numa cama de açúcar, abraçados a pau de canela.
E volto ao aroma adocicado e à cor – de um laranja a entrar nos avermelhados, trazem-nos aqueles pores do sol, muito intensos a mergulharem no mar.

Ao tempo de outras tardes tão cheias e adoçadas, quando a mãe mexia, delicadamente, o polme na panela que só nesta altura do ano saía do armário. A mesma panela que hoje uso, igualmente para o mesmo fim.

São estas heranças, joias valiosas, cravadas de tanta vida que ainda nos ligam a um tempo tão sentido e que alimentamos como pedaços únicos numa fatia de pão.

Volto ao avental da mãe e aos seus olhos de ternura. À cozinha da casa, o lugar de conversas e afetos. Ali nos encontrávamos para risadas e silêncios.
Com a mãe aprendi o “ponto de estrada”; riscar com o dedo um pouco de doce e ver duas linhas afastarem-se como duas retas paralelas a indicarem se o caminho é por ali.
Gosto da textura acetinada e brilhante da marmelada, de a distribuir pelas tijelas de porcelana – herança da mãe.

Gosto de voltar àqueles dias de abundantes sorrisos, onde as mãozitas pequenas rapavam o fundo da panela e os rostos lambuzados faziam a felicidade da mãe.
Gosto de recortar o papel vegetal e cobrir o doce como se ali perpetuassem alguns segredos.

Gosto de alinhar as tijelas no parapeito da janela soalheira para secar a doçura. Dar-lhe tempo de cura. Um repouso merecido.

Gosto de recriar o que a memória ainda me permite e trazer o que fomos para o convívio daquilo que queremos ser.

E gosto, nas manhãs frias e chuva a bater nas vidraças, saborear um pedaço numa torrada quente e um café bem negro.

Gosto deste tempo que me aproxima de outro tempo e me leva ao colo da mãe.



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