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Segunda-feira, Maio 12, 2025

Entre as Meditações de Marco Aurélio e a Partida do Papa Francisco – Por José Paulo Santos

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“Quando quiseres alegrar o teu coração, pensa nas várias excelências daqueles que vivem à tua volta. Pensa na atividade de um, na modéstia de outro, na generosidade de um terceiro e nas outras virtudes dos restantes. Nada alegra mais o coração do que os exemplos, quantos mais, melhor, de bondade manifestada nos caracteres daqueles que nos rodeiam. Tenhamos, pois, esses exemplos sempre presentes para reflexão.”
Marco Aurélio, Meditações


Neste momento em que o mundo se veste de luto pela morte do 266.⁰ Papa, o Francisco, mergulho nas páginas gastas das “Meditações” de Marco Aurélio (121 – 180 d.C), “um dos cinco bons imperadores romanos”, segundo palavras de Maquiavel.

É curioso como, separados por séculos de história, dois homens de pensamento e ação tão distintos podem convergir no mesmo horizonte: o apelo à virtude, ao dever, à humanidade elevada num mundo que parece constantemente inclinado para o caos.

Marco Aurélio, imperador romano e filósofo estóico, escreveu as suas reflexões como um exercício íntimo de disciplina espiritual. Não foram escritas para serem publicadas, mas para si próprio, como uma bússola moral num mundo turbulento.

Hoje, enquanto leio estas palavras antigas, vejo nelas ecoar os gestos e ensinamentos de um homem moderno, Jorge Mario Bergoglio, que há pouco nos deixou, na segunda-feira de Páscoa. Ambos, cada um à sua maneira, lutaram contra as correntes mais baixas da natureza humana — a corrupção, a violência, a indiferença — e nos pediram para olhar para cima, para o que há de melhor em nós.

Marco Aurélio escreveu certa vez:

“Não percas mais tempo a falar do que é um homem bom. Sê um.”

Quantas vezes o Papa Francisco repetiu esta ideia, não com estas palavras, mas com os seus atos? Ele, que escolheu o nome de um santo conhecido pela simplicidade e pelo amor aos pobres, viveu como poucos líderes espirituais ousam viver.

Renunciou às pompas do Vaticano, trocou os luxos pelo essencial e caminhou entre os marginalizados, os refugiados, os esquecidos. Era um Papa que lavava os pés de prisioneiros, que abraçava leprosos, que denunciava as desigualdades sociais sem medo de confrontar os poderosos. Eram gestos simples, mas profundamente eloquentes, como se dissesse: “Aqui estou eu, um homem entre homens.”

Outro aforismo de Marco Aurélio entoa com força neste momento de perda:

“Aceita as coisas que acontecem, mesmo que sejam difíceis, se forem necessárias para o bem do todo.“

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O Papa Francisco enfrentou tempos difíceis. Um pontificado marcado por crises internas na Igreja Católica, resistências aos seus apelos por reformas, críticas por parte de setores conservadores. No entanto, ele manteve-se firme, sempre com um sorriso terno e uma palavra de esperança. Dizia frequentemente:

“Não tenham medo do futuro. Deus está connosco.”

E agora, ao partirmos também nós deste capítulo da sua vida, somos convidados a refletir sobre o legado que deixa. Como Marco Aurélio nos lembra, a verdadeira grandeza não está naquilo que acumulamos, mas naquilo que oferecemos ao mundo.

O Papa argentino, talvez mais do que qualquer outro líder religioso contemporâneo, soube traduzir essa ideia em gestos concretos. Ele mostrou-nos que a fé não é um mero conjunto de dogmas, mas um compromisso vivo com a justiça, a misericórdia e a compaixão.
Há ainda outra frase de Marco Aurélio que me faz pensar nas últimas mensagens do Papa Francisco:

“Vive cada dia como se fosse o último, mas não como quem foge da vida, e sim como quem abraça plenamente o dever presente.”

Este era o espírito de Francisco. Aos 88 anos, já debilitado fisicamente, continuava a trabalhar incansavelmente. Visitava hospitais, recebia delegações, escrevia encíclicas que desafiavam o status quo. Nunca parou, nunca desistiu. Lembro-me de uma das suas frases mais emblemáticas, proferida numa das suas audiências gerais:

“Onde há ódio, devemos semear amor; onde há ofensa, devemos perdoar; onde há discórdia, devemos promover a paz.”

Que lição poderosa para o nosso tempo! Numa era dominada pelo ruído das redes sociais, pelas guerras de narrativas, pelas divisões políticas e ideológicas, o papa argentino lembrava-nos que a mudança começa no coração de cada um de nós.

Que podemos escolher ser melhores, mesmo quando o mundo à nossa volta parece desmoronar-se.

Hoje, enquanto fecho as páginas das Meditações e penso na partida de Francisco, sinto uma estranha sensação de conforto. Talvez porque ambos me recordam que, por mais sombrio que o mundo possa parecer, há sempre espaço para a luz. Há sempre lugar para aqueles que, como Marco Aurélio e o Papa argentino, decidem colocar os princípios acima dos interesses pessoais, a virtude acima da conveniência, o amor acima do medo.

No final, talvez seja isso que realmente importa. Não o que conquistamos ou acumulamos, mas aquilo que damos, aqueles que tocamos, as vidas que mudamos. E nesse sentido, tanto Marco Aurélio como o Papa Francisco são faróis que continuam a iluminar o caminho, mesmo depois de partirem.

Descanse em paz, caríssimo Francisco. E obrigado por nos lembrar que, mesmo num mundo de corrupção e violência, ainda é possível sonhar com algo melhor.

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