Placido Domingo é popularmente muito menos conhecido como maestro do que como cantor lírico. Como tenor, conseguiu construir uma sólida carreira de primeiríssimo plano ao longo de décadas, tornando-se um dos maiores e mais aclamados tenores de todos os tempos. Passa por ser o músico que maior número de papéis completos de ópera interpretou e cantou (mais de sete dezenas).
A sua brilhante carreira nos Estados Unidos da América, que abrangeu a direcção-geral das Óperas Nacional de Washington e de Los Angeles, terminou em 2020 na sequência das denúncias vindas a público de dezenas de mulheres, ligadas ao mundo da ópera (desde cantoras e bailarinas, até trabalhadoras nos bastidores), que se queixaram de ter sido assediadas sexualmente pelo cantor e maestro, a coberto da sua importância e ascendente.
Nenhuma das denúncias teve por consequência um processo penal, mas por causa delas Domingo teve de abandonar o seu cargo de director-geral da Ópera de Los Angeles e viu cancelados os seus compromissos com a Orquestra de Filadélfia, com a Ópera de Dallas e, muito em especial, com a Ópera Metropolitana de Nova Iorque, tida como o templo maior dentre as Casas da Ópera do mundo. Nos EUA a sua carreira acabou.
O norte-americano James Levine foi, em contrapartida, muito mais famoso popularmente como maestro do que como o pianista exímio que começou por ser. Durante mais de quatro décadas foi o director musical da Ópera Metropolitana de Nova Iorque que muito ajudou a guindar solidamente ao primeiro plano mundial.
Foi despedido em 2018 pela Ópera Metropolitana, da qual na altura era director musical emérito, na sequência de denúncias de jovens músicos que se queixaram de assédio sexual por parte do maestro e de uma investigação interna que concluiu que Levine tinha, durante décadas, abusado de e assediado sexualmente homens jovens, em início de carreira como músicos, aproveitando-se do seu ascendente profissional.
Também no seu caso não houve qualquer procedimento criminal na sequência das referidas denúncias. O maestro nunca aceitou as acusações e procedeu judicialmente contra a Ópera Metropolitana por quebra de contrato e por difamação. O caso terminou num acordo entre as partes e por uma indemnização vultuosa ao maestro, embora inferior à que ele exigira. Não é de excluir que estes revezes da fama e prestígio mundiais tenham abreviado depois a sua morte.
O ex-presidente dos EUA, Donald Trump, acaba de ser considerado culpado por um tribunal judicial no seu país por 34 crimes de falsificação de registos financeiros para esconder um escândalo sexual e não afectar por causa dele as eleições presidenciais. A pena pode ser prisão e só será conhecida em Julho, mas isso não evita que Trump seja o primeiro (ex)presidente norte-americano a ser criminalmente considerado culpado criminalmente por crimes de que foi formalmente acusado.
No entanto, sabe-se que o veredicto e a pena não impedem a candidatura e eleição nas próximas eleições presidenciais, uma vez que a Constituição não o veda.
Não consta que Donald Trump tenha competências profissionais para dirigir uma orquestra ou para ser Don José na Carmen de Bizet ou Duque de Mântua no Rigoletto de Verdi, mas, se tivesse, provavelmente não conseguiria encontrar trabalho nos palcos sinfónicos ou de ópera do seu país, a avaliar pelos casos de Levine e de Domingo que foram despedidos por meras denúncias, sem antecedentes penais.
Inquietante – desde logo por raiar o surreal – é saber que esses antecedentes não impedem o desempenho da presidência do maior e mais poderoso país do Ocidente e que, consequentemente, se possa em importante parte decidir sobre o destino do mundo.
Jurista