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Quinta-feira, Novembro 13, 2025

Caminhos de Humanidade trilhados contra o fogo: a grandeza humana que venceu os incêndios – Por Maria João Coelho

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Quando, em três dias, no nosso país arderam mais de cento e vinte mil hectares de área, deveríamos fazer uma profunda reflexão sobre os nossos comportamentos de modo a arrepiar caminho!

Tal como a maioria dos portugueses, vivi os últimos dias, agarrada às notícias e, assolada pelo medo da possibilidade da repetição do drama dos incêndios de 2017. Esta segunda-feira no centro do país despertamos para um pesadelo! O dia nascia em fumo, fagulhas e um céu acastanhado sem sol, embora estivesse bastante calor. Tudo parecia estranho!

Conjugavam-se os três fatores atípicos em termos de condições atmosféricas, conhecidos como a temível regra dos 30: mais de 30º de temperatura, menos de 30% de humidade e mais de 30 km/h de velocidade do vento – condições que potenciam ao máximo o risco de incêndios! Por isso, quando se confirmaram os primeiros fogos nos distritos de Aveiro, Viseu e Coimbra e, nas redes sociais surgiam vídeos de automobilistas a atravessarem autoestradas, ladeados por círculos de fogo, tudo parecia indiciar a proximidade da tragédia.

Encontrava-me em Aveiro com a minha filha e, sabia-a bem e em segurança, fiz os primeiros telefonemas para ver o que se passava com o meu marido, que estava a caminho de Santarém, e com a minha mãe em Mangualde. No centro do país, amigos tinham quintas e residências cercadas pelo fogo. Chegavam relatos de mais incêndios. Permaneci retida na cidade, quando fecharam a A1, A25, A29, N109 e interromperam a circulação de comboios. Mas, esse era o mal menor perante os relatos de outros a quem queria tão bem e que lutavam pelas suas vidas e bens.

O ser humano é estruturalmente vulnerável e frágil. Sabemo-lo e temos constatado desde Aristóteles que é igualmente um ser social, capaz de fazer caminho com os outros, nos momentos mais felizes e nos de adversidade, como os vividos na passada semana.
As gentes da beira são hospitaleiras e solidárias por natureza, e nas horas mais difíceis estão habituadas a unirem-se e a “arregaçar mangas” para lutarem em conjunto. E quando tudo parecia falhar… tudo era pouco, os bombeiros pareciam não chegar para tantas ocorrências, os meios aéreos insuficientes, a floresta ardia sem dó nem piedade.

Os incêndios eram cada vez em maior número, o perigo invadia a quietude das aldeias e das vilas, e o fogo parecia querer alimentar-se das construções e vidas humanas…tudo parecia efetivamente falhar mas, não falhou a humanidade!

Cada um encontra-se consigo próprio na medida em que é capaz de se relacionar com o outro. E as comunidades beirãs e nortenhas emergiram em cada homem e mulher que, corajosamente, quiseram fazer frente ao monstruoso, revelando a grandeza e dignidade humanas em cada gesto, em cada ato de coragem…
Quando um jovem arranca no seu trator e se imiscui no mato em chamas para salvar as casas da sua aldeia, ou quando mulheres se unem a encher baldes para oferecer às vizinhas sem força, tomadas pela idade e pelo medo, ou grupos de homens munidos de enxadas lutam contra as chamas para protegerem as casas de outros, – é a humanidade na sua essência que se revela.

Foto de JOSÉ COELHO/LUSA

Comunidades inteiras unidas com o mesmo propósito – apagar o fogo, salvarem as suas vidas, as casas e os animais. Salvar os bens conseguidos e construídos ao longo da vida, com suor e lágrimas. O mesmo suor e lágrimas que os faziam agora mais fortes, lhes davam alento para continuar o combate mesmo com os corpos doridos, cansados. Pessoas que pareciam esquecer-se de si, num altruísmo puro. Como a equipa de meia dúzia de bombeiros que sozinhos conseguiram defender uma empresa, protegendo-a, embora no seu interior houvesse produtos altamente inflamáveis, desprotegendo-se a si mesmos e esquecendo-se do risco que corriam…

Populares que enfrentaram o perigo para salvar uma idosa acamada, um padre que não abandonou o seu rebanho e combateu o fogo durante dias.

Baldes, mangueiras, enxadas, tratores, retroescavadoras….tudo servia para uma luta desigual. Homens e mulheres a lutar herculeamente, enquanto o fogo qual monstro devorador ziguezagueava e tudo destruía. Sem compaixão, sem clemência, pela história e trabalho de toda uma vida, das vidas de muitos e de comunidades inteiras.

Mas mesmo, na imensidão dramática, a philia aristotélica teimava em materializar-se nestes seres humanos heróicos, numa proximidade ao outro, reveladora da condição de possibilidade de realização da própria natureza humana. O filósofo estagirita foi assertivo quando evidenciou bem esta forma de amizade, uma amizade cujo fundamento é o bem é já uma relação entre homens bons, ou seja, entre homens que necessariamente dominam as atividades moralmente boas.

E durante a semana passada, foi o cuidado e o querer-bem ao outro que venceram o maldito e monstruoso fogo. Foi a constatação pelos humanos da sua vulnerável finitude como mortais e também da sua responsabilidade ou cuidado como forma de ser humano.

A contabilidade humana mesmo assim é trágica. Perderam-se sete vidas…sete seres humanos que tombaram a ajudar o próximo, sete vidas interrompidas pela “Fénix” que teimava em renascer e parecia não se deixar domar.

A dor vai demorar a atenuar. A paisagem negra vai permanecer durante mais tempo a turvar as boas memórias daquilo que outrora aí se encontrava. O silêncio ecoará! Vencemos a prova de fogo com a constatação da nossa vulnerável finitude como mortais e também, com a certeza da necessidade da responsabilidade e cuidado como forma da nossa afirmação de seres. Humanos, de carne e osso

Foto de JOSÉ COELHO/LUSA

Ocorre-me, então, o apelo de Heidegger a um pensamento mais aberto, em busca de um novo paradigma, um novo caminho. O filósofo alemão propôs-nos, nos anos 40 do século passado, pensar sobre o mundo tecnológico e suas implicações. Hoje esse mundo colocou-nos no caminho das alterações climáticas. Melhor dito, fomos nós com esta forma de habitar o mundo que chegámos até aqui. Não podemos fugir da globalização, nem tão pouco recusar a presença da tecnologia nas nossas vidas, porém, temos de (re)pensar os seus perigos, as suas implicações…encontrar a clareira no meio do bosque, um caminho menos denso na floresta!

As palavras de Heidegger não podiam ser mais certeiras: “Na floresta há caminhos que no mais das vezes, invadidos pela vegetação, terminam subitamente no não-trilhado. Eles se chamam caminhos da floresta.” (Heidegger, “Caminhos de Floresta, 2014)
Talvez estes cenários de fogo destes últimos dias nos lembrem uma vez mais que temos andado a trilhar um caminho nas florestas que não leva a parte nenhuma; um caminho de floresta feito para nos perdermos e, para votarmos ao esquecimento os relatórios e recomendações que os especialistas efetuaram no pós-incêndios de 2017.

Porém, com esperança, com a mesma força que uniu comunidades inteiras na luta dos incêndios, com a vontade de continuarmos o trabalho de memória pelos que perderam a vida, com a decisão de voltarmos a ser comunidade com voz, talvez o caminho possa ser diferente, talvez haja esperança para um “viravolta”, o “passo atrás” que nos permita não nos focarmos apenas na folha da árvore, nem somente na árvore mas, que nos guie e nos leve a querer ter a perspetiva do todo vivo que é uma floresta.

Dessa forma poderemos iniciar um novo trilho que permita abandonar de vez as monoculturas, reflorestar de forma mais ordenada e resiliente para na diversidade da natureza, nos reencontrarmos com a origem e os fundamentos do ser humano, sem drama, sem tragédia.

OC/MJC/AJS



 

 

 

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