No meu tempo de jovem frequentei o Café Rialto, na Praça de D. João I (Porto). Era um espaço que tinha um atractivo especial no salão principal do café, ao nível do rés-do-chão: um mural com predominância do preto e branco, medindo cinco metros de largura por três de altura, da autoria do médico, cientista e artista plástico Abel Salazar (1889-1946); e mais três murais na cave, sendo dois da autoria de Dordio Gomes e um de Guilherme Camarinha.
O Café Rialto fechou em 1972 e mais tarde foi transformado em balcão do Banco Millennium, mas o painel de Abel Salazar continuou a ser um atractivo para os clientes o olharem enquanto aguardavam atendimento. Achei curioso o facto de aquela obra, que tem o título “Síntese da História” e que representa “o Trabalho, a Luxúria e o Capital“, acabar por decorar a parede de um banco!…
Cheguei a levar lá o meu neto para lhe mostrar a obra e falar do seu autor. O empregado bancário, solicito, permitiu-me a intrusão do seu espaço de trabalho e informou-me que frequentemente professores da Escola Superior de Belas-Artes ali iam com alunos para apreciarem a obra.
Um dia, aquele balcão do Millennium fechou… e depois o espaço abriu com uma loja Miniso, estilo “loja dos 300” em versão japonesa. Entrei para saber da obra e não a vi. Perguntei por ela a uma empregada que me informou estar tapada por detrás das prateleiras que expunham os artigos. Fiquei para morrer!… Bati com os nós dos dedos naquela parede e comprovei ser um tapamento de madeira. O lojista não sabia da atracção que tinha no seu espaço, que podia ser uma mais valia para atrair clientes, e ocultou-o!
Falei com um camarada jornalista do Jornal de Notícias sobre o assunto. Ele já sabia daquele atentado ao património artístico do Porto, tinha feito notícia sobre o caso e falado com a responsável da Casa Museu Abel Salazar (em S. Mamede de Infesta), a qual também estava desolada, esperava que a obra não tivesse sido danificada e que a sua recuperação fosse possível. Porém havia dificuldades no processo: o dono do prédio (a empresa Endutex) era quem podia fazer algo, mas a nada era obrigado por lei.
Há dias (23 de Janeiro) o jornal Público deu a Boa Nova em texto assinado pelo jornalista André Borges Vieira. Finalmente a Arte de Abel Salazar foi destapada, graças à acção de um cidadão interessado pela obra e desiludido pela sua ocultação: o engenheiro Renato Soeiro (foi candidato à presidência da Câmara Municipal de Gaia pelo Bloco de Esquerda) que escreveu aos jornais alertando para o atentado, o escritor Mário Cláudio juntou-se ao protesto, e eu próprio (desconhecendo a actuação destas duas personalidades tripeiras) publiquei no Facebook a manifestação da minha tristeza quando entrei na loja.
Após esforçadas tentativas que Renato Soeiro fez com o presidente da Câmara Municipal do Porto, com a Reitoria da Universidade e com a Endutex, empresa proprietária do imóvel (até a Escola Abel Salazar, de Guimarães, se mostrou interessada no processo), abriu-se o caminho que conduziu à desocultação da obra de Abel Salazar, que já pode ser fruída pelos clientes que vão ali comprar objectos utilitários e encontram Arte para poder ser admirada… o que não existe noutra “loja dos 300”. As restantes obras continuam na cave do prédio, onde funciona a Fundação Millennium com entrada pela Rua de Sá da Bandeira e que, a pedido, podem ser vistas.
Os jornais têm destas coisas… para além das desgraças que ocorrem no mundo (e à nossa porta), às vezes também nos dão excelentes notícias!
Jornalista/Cartunista