O Cidadão (OC) – O que o levou a seguir a carreira de curador de arte? Sempre soube que queria trabalhar com isso?
Amadeu Ricardo ( AR) – A arte sempre exerceu um fascínio sobre mim, não apenas pelo impacto visual, mas pela sua capacidade de contar histórias, provocar reflexões, estabelecer ligações entre diferentes tempos e culturas. No início, não sabia exatamente que a curadoria seria o meu caminho, mas a minha paixão por explorar as narrativas visuais e construir diálogos entre as obras e os espectadores trouxe-me naturalmente a este caminho. Hoje, vejo a curadoria como uma forma de mediação entre o artista e o público, criando experiências que ampliam percepções e estimulam novas leituras do mundo.
OC – Como foi o seu percurso até chega aqui? Que desafios enfrentou no caminho?
AR – O meu percurso até aqui foi uma combinação de curiosidade, aprendizagem e muita persistência. Desde cedo, fui atraído pela arte, mas o meu caminho profissional começou com a Engenharia e ai permaneceu durante mais de 20 anos , até ao dia em que percebi que teria de mudar de caminho e aí estou eu no mundo da arte . Ao longo do caminho, enfrentei desafios como inserção no mercado, encontrar uma identidade curatorial, equilibrar tradição e inovação. Cada obstáculo, no entanto, fortaleceu a minha visão e reafirmou o meu compromisso em criar diálogos significativos entre a arte, os artistas e o público. Hoje, olho para trás e sinto que cada experiência, mesmo as mais difíceis, contribuíram para a minha evolução.
OC – O que define uma boa curadoria para ti? Há algum princípio que segues sempre?
AR – Para mim, uma boa curadoria é aquela que cria diálogos instigantes entre as obras, os artistas e o público, ultrapassando a simples exposição de peças e oferecendo uma experiência que provoca reflexão e emoção. Procuro sempre um equilíbrio entre coerência conceptual e liberdade interpretativa, permitindo que cada espectador encontre o seu próprio caminho dentro da narrativa proposta. Um princípio que sigo sempre é o respeito pela integridade da arte e do artista—acredito que a curadoria não deve impor significados, mas sim criar pontes que ampliem o alcance e a profundidade das obras.
OC – Qual foi a exposição ou projeto mais especial que já organizou?
AR – Cada exposição tem o seu próprio significado e impacto, mas os projetos mais especiais que organizei são sem dúvida as exposições coletivas.
Elas destacam-se, não apenas pelo seu conceito, mas pela forma como conseguimos narrar uma história e envolver os visitantes, acabando por gerar diálogos interessantes.
Estes projetos reafirmam, para mim, o poder da curadoria em transformar espaços e ligar pessoas através da arte.
OC – Como equilibra a sua visão pessoal com as expectativas do público e dos artistas?
AR – Equilibrar a minha visão curatorial com as expectativas do público e dos artistas é um exercício constante de escuta, diálogo e mediação. Acredito que a curadoria deve ter uma identidade e um propósito claros, mas sem ser autorreferencial ou impositiva. Procuro sempre compreender a essência do trabalho dos artistas, respeitando as suas intenções e trazendo a sua voz para o centro da exposição. Ao mesmo tempo, penso na experiência do público—como a narrativa da exposição pode despertar interesse, provocar questões e criar conexões significativas. O segredo está algures em encontrar esse ponto de convergência: um espaço onde a integridade artística se mantém, mas que também convida à interação e ao envolvimento genuíno de quem visita.
OC – Que conselhos daria a alguém que quer entrar no mundo da curadoria de arte?
AR – A curadoria é um campo fascinante, mas exige sensibilidade, pesquisa e um olhar atento para a arte e para o mundo em volta. Para quem deseje entrar neste universo, o meu principal conselho é cultivar a curiosidade—explorar diferentes expressões artísticas, estudar História da Arte teórica e práticas curatoriais e visitar exposições, mas com um olhar analítico. Além disso, deve construir conexões genuínas com artistas, críticos e outros curadores; a troca de ideias e de perspectivas é essencial. Outro ponto importante é ganhar experiência prática—seja através de estágios, voluntariado ou projetos independentes. Acima de tudo, ter uma visão, mas estar sempre aberto ao diálogo e à experimentação. A curadoria é sobre contar histórias através da arte, e quanto maior for o repertório, mais fascinantes serão as narrativas.
OC – O que diferencia um grande curador de um curador mediano?
AR– Boa pergunta, mas a resposta é pessoal. O que diferencia um grande curador de um curador mediano é a capacidade de ir para além da simples organização de uma exposição e transformar a experiência do público. Um grande curador não seleciona apenas as obras com critério, mas constrói narrativas que desafiam, emocionam e permanecem na memória. Ele tem uma visão clara, mas também sensibilidade para ouvir artistas e espectadores, criar diálogos significativos. Além disso, a procura de inovação sem perder a profundidade, equilibrando a pesquisa rigorosa com a intuição e a criatividade. No fundo, o que distingue um grande curador é a sua capacidade de tornar a arte acessível e relevante, conectando tempos, contextos e pessoas de uma maneira autêntica e impactante.
OC – Quais são os critérios essenciais para selecionar obras para uma exposição?
AR – A seleção das obras para uma exposição depende de um conjunto de critérios que variam conforme o conceito curatorial, o espaço expositivo e o público-alvo. No entanto, alguns princípios são essenciais. Primeiro, a coerência conceitual: cada obra deve dialogar com a temática proposta e contribuir para a construção da narrativa da exposição. Depois, a qualidade artística e a relevância histórica ou cultural da peça, garantindo que ela tenha força visual e discursiva. Também considero a diversidade de perspectivas, buscar um equilíbrio entre diferentes linguagens, artistas e contextos. Além disso, fatores como viabilidade logística, estado de conservação e o impacto da obra no espaço expositivo devem ser determinantes. Acima de tudo, uma boa curadoria deve criar ligações entre as obras, permitindo que juntas formem uma experiência significativa para o público.
OC – Como gere a relação entre arte, mercado e público sem comprometer a qualidade da curadoria?
AR – Gerir a relação entre a arte, o mercado e o público é um dos maiores desafios da curadoria, pois cada um desses elementos tem dinâmicas próprias e, por vezes, interesses divergentes. Para mim, o essencial é manter a integridade curatorial, garantindo que as escolhas artísticas sejam guiadas pela qualidade e relevância das obras, e não apenas por pressões comerciais ou tendências passageiras. Ao mesmo tempo, é importante entender o contexto do mercado da arte—não para se submeter a ele, mas para navegar nas suas influências de uma forma estratégica e crítica. Quanto ao público, procurar criar exposições acessíveis e envolventes sem diluir o conteúdo artístico. O equilíbrio está em oferecer experiências que desafiem e ampliem a percepção dos espectadores, ao mesmo tempo que preservam a autonomia da arte e do artista. No fim, a curadoria deve atuar como um mediador inteligente, capaz de dialogar com todos esses agentes sem comprometer a essência do seu discurso.
OC– O que faz uma exposição ser memorável para o público e para os artistas?
AR –Uma exposição memorável é aquela que transcende a mera disposição de obras num espaço; ela cria um universo sensorial e intelectual que envolve tanto o público quanto os artistas.
Para o público, a exposição deve proporcionar uma experiência imersiva e instigante, despertando emoções, questões e novas perspectivas. A curadoria, nesse sentido, desempenha um papel fundamental: ao criar uma narrativa coesa, que guie o espectador através das obras, ela transforma a contemplação em caminho. A cenografia, a iluminação e a interação com o espaço contribuem para a criação de um ambiente que amplifica o impacto da arte, tornando cada peça um portal para o inesperado.
Já para os artistas, uma exposição memorável é aquela que respeita e potencializa as suas criações, proporcionando um diálogo entre as obras, e entre estas e o público. A escolha do local, a forma como as peças são dispostas e a comunicação da proposta expositiva são aspectos que elevam a experiência do criador, garantindo que sua visão seja transmitida com autenticidade e profundidade. Além disso, quando a exposição provoca reflexão, estabelece conexões emocionais e se mantém viva na memória dos visitantes, ela torna-se um marco, não apenas na trajetória do artista, mas no próprio imaginário coletivo.
No encontro entre obra, espaço e espectador, nasce a verdadeira magia de uma exposição memorável: aquela que não apenas se vê, mas sente-se e a carregamos na memória.
OC– Qual o seu principal objetivo ao organizar uma exposição?
Nas exposições o meu objetivo é conferir visibilidade a artistas emergentes e talentos ainda pouco reconhecidos, oferecendo-lhes uma plataforma onde as suas criações possam dialogar com o público e com um cenário artístico mais amplo. Desejo que o espaço transcenda a mera função expositiva, tornando-se um verdadeiro ponto de encontro para novas propostas, um território fértil para a troca de ideias e a convergência de múltiplas visões.
Que cada obra não seja contemplada apenas, mas discutida, reinterpretada e ressignificada num ambiente dinâmico e estimulante. Que seja um refúgio para a experimentação, um local onde a arte não apenas ocupa paredes, mas pulsa, provoca e transforma. Mais do que um espaço físico, almejo um ecossistema criativo, no qual a inovação e a autenticidade encontrem solo fértil para florescer.
O Cidadão agradece ao Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, a disponibilidade em ceder o seu espaço, onde realizámos esta entrevista.
Repórter