16.3 C
Porto
19 C
Lisboa
18.9 C
Faro
Terça-feira, Novembro 5, 2024

A vague à l’âme e o sentido da vida – Por José Paulo Santos

As mais lidas

José Paulo Santos
José Paulo Santos
Professor, Poeta e Formador

 

Guernica
fonte: https://blog.artsper.com/en/a-closer-look/artwork-analysis-guernica-by-picasso/
Criança admirando Guernica de Pablo Picasso, no Museu Reina Sofia, em Madrid. Direitos Reservados

Se eu fosse árvore entre as árvores, gato entre os animais, esta vida teria sentido, ou melhor, não teria esse problema pois eu faria parte desse mundo.
Albert Camus, in O Mito de Sísifo


O conflito entre Israel e o Hamas atingiu um ponto trágico, com bombardeios aéreos e incursões terrestres que resultaram em milhares de mortes de civis. Esta escalada violenta trouxe devastação sem precedentes para Gaza, que já enfrenta uma crise humanitária. O absurdo deste conflito está na perda massiva de vidas inocentes e na contínua luta pelo poder numa região onde o sofrimento humano parece não ter fim, ressaltando a futilidade de tentar encontrar um sentido diante de uma violência tão desproporcional e aparentemente interminável​.

Perante esse alastramento de conflitos e de tragédias, ocorre-me uma citação de Albert Camus, no Mito de Sísifo, que reflete sobre a condição humana e o sentimento de absurdo. Quando ele diz: “se eu fosse árvore entre as árvores, gato entre os animais, esta vida teria sentido”, o escritor francês explora a ideia de que os seres não humanos não têm a capacidade de refletir sobre o sentido da vida ou a sua própria existência. Para uma árvore ou um gato, a existência é simples e natural, sem a carga do questionamento existencial.
A frase “ou melhor, não teria esse problema” sugere que o problema do sentido da vida surge precisamente da consciência humana.

Camus acredita que os humanos, ao contrário dos animais e plantas, são dotados de uma consciência que os leva a questionar o sentido da sua existência. Para uma árvore ou um gato, o mundo é suficiente por si só, sem necessidade de questionamentos. Mas, para o ser humano, essa busca por significado muitas vezes se torna um fardo, gerando o sentimento de absurdo — a disparidade entre o nosso desejo por sentido e a aparente indiferença do universo.
Camus diz-nos que, se fôssemos como os outros seres da natureza, não estaríamos presos à angústia existencial. Contudo, como seres conscientes, somos forçados a lidar com o “problema” de dar sentido à vida neste universo que não oferece respostas claras.
Poderemos ignorar o sentido da vida, mas não podemos deixar de dar sentido à nossa própria vida. É fundamental parar! É absolutamente urgente desligarmo-nos e viajar pelo nosso interior em busca da nossa mais profunda essência. Há um mundo ainda por descobrir e por explorar, neste mundo de excessos e de dependências.

Há um estado de espírito que muitas vezes me invade, diante de tantas tragédias e catástrofes, esse “vague à l’âme“, expressão francesa que pode ser traduzida para o português como “vago na alma” ou “vaga na alma”. É um sentimento de melancolia, de nostalgia ou uma sensação indefinida de tristeza e descontentamento. Muitas vezes, está associada a um estado de espírito contemplativo, onde a pessoa se sente um pouco perdida ou desconectada emocionalmente. É uma sensação que pode surgir sem uma razão aparente, provocando uma reflexão sobre a vida e as suas complexidades.

As emoções melancólicas podem ter um impacto profundo na criatividade artística, influenciando tanto o processo criativo quanto o resultado final das obras. Aqui estão manifestações artísticas dessa relação:

1. Profundidade Emocional: a melancolia pode levar os artistas a explorar temas mais profundos e complexos, como a perda, a solidão e a nostalgia. Isso pode resultar em obras que ressoam emocionalmente com o público.

2. Reflexão e Introspeção: momentos de tristeza ou melancolia frequentemente incentivam a reflexão interna. Os artistas podem usar essa introspeção para explorar as suas próprias experiências e sentimentos, traduzindo isso na sua arte.

3. Estímulo da Imaginação: a melancolia pode ativar a imaginação, levando os artistas a criar mundos e narrativas que refletem os seus estados emocionais. Isso pode resultar em obras mais inovadoras e originais.

4. Expressão de Conflitos Internos: as emoções melancólicas muitas vezes são complexas e contraditórias. Os artistas podem usar a sua arte para expressar esses conflitos, criando peças que capturam a dualidade da experiência humana.

5. Conexão com o Público: a melancolia é uma emoção universal que muitas pessoas podem vivenciar. Artistas que abordam esses sentimentos na suas obras podem criar uma conexão mais forte com o seu público, dando origem a uma maior empatia e compreensão.

6. Libertação Emocional: para muitos artistas, a criação é uma forma de lidar com as suas emoções. A expressão artística pode servir como uma forma de catarse, permitindo que os artistas processem e liberem a tristeza.

7. Estilo e Estética: a melancolia pode influenciar as escolhas estéticas, como paletas de cores, temas e formas. Os artistas podem optar por estilos que refletem ou amplificam as suas emoções, criando uma atmosfera que espelhe a melancolia.
As emoções melancólicas podem atuar como um catalisador poderoso para a criatividade, levando os artistas a explorar novas dimensões das suas experiências e a criar obras que tocam as emoções do público.

Várias obras de arte, literatura e música, ao longo da história, abordam temas melancólicos, refletindo a complexidade das emoções humanas. Aqui estão apenas algumas das mais famosas, que muito recomendo:

Na Literatura:

1. “A Metamorfose” de Franz Kafka: esta novela explora a alienação e a desumanização, retratando a vida do caixeiro viajante, Gregor Samsa, depois de se transformar num inseto.

2. “Os Sofrimentos do Jovem Werther” de Johann Wolfgang von Goethe: um romance epistolar que narra a paixão não correspondida e a angústia emocional do protagonista, Werther.

3. “A Montanha Mágica” de Thomas Mann: uma obra que explora a vida e a morte num sanatório, abordando temas de reflexão e a passagem do tempo.

Nas Artes Visuais:

1. “O Grito” de Edvard Munch: Esta icónica pintura expressa angústia e desespero, capturando uma sensação profunda de melancolia.

2. “A Noite Estrelada” de Vincent van Gogh: embora seja uma obra vibrante, muitos interpretam a pintura como uma expressão da luta interna de Van Gogh e a sua própria melancolia.

3. “O Triunfo da Morte” de Pieter Bruegel, o Velho – Uma visão apocalíptica do caos e da morte, retratando a impotência humana frente ao desastre e à inevitabilidade do sofrimento


Na Música:

1. “Adagio for Strings” de Samuel Barber: uma composição magnífica e arrepiante que evoca uma profunda sensação de tristeza e reflexão.

2. “Creep” do Radiohead: a letra da canção expressa sentimentos de inadequação e desespero, ressoando nos seus muitos ouvintes.

3. “Nightswimming” do R.E.M.: uma canção que evoca nostalgia e melancolia, refletindo sobre o tempo e as memórias.

No Cinema:

1. “A Estrada” (The Road): um filme que aborda a desolação e a luta pela sobrevivência num mundo pós-apocalíptico, carregando um tom melancólico.

2. “Cidades de Papel” (Paper Towns): uma história sobre busca e perda, que explora a melancolia da adolescência e a busca por identidade.

3. “Melancolia” de Lars von Trier: o filme lida explicitamente com a depressão e a melancolia, usando a metáfora de um planeta colidindo com a Terra.

Todos os exemplos e temas apresentados — o conflito entre Israel e Hamas, as crises humanitárias em Mianmar e Sudão do Sul, a guerra na Ucrânia e até mesmo a dependência digital — ilustram uma mesma tensão existencial. No âmago dessas situações, vemos o conflito entre o desejo humano de ordem, sentido e pertença e a indiferença do universo diante desse anseio, exatamente como Albert Camus descreve em O Mito de Sísifo.
Camus aponta para o fardo de sermos conscientes e, por isso, obrigados a lidar com questões de significado no meio de uma existência absurda, onde a vida pode ser brutal e imprevisível. As tragédias e as guerras, onde a violência aparentemente não tem fim e o sofrimento humano é extremo, reforçam esse sentimento.

Esses eventos mostram como a condição humana, tão diferente da de uma “árvore entre as árvores”, é marcada pela constante luta contra o absurdo e pela tentativa, muitas vezes inútil, de fazer sentido num mundo que parece não oferecer respostas claras.

- Publicidade -spot_img

Mais artigos

- Publicidade -spot_img

Artigos mais recentes

- Publicidade -spot_img