Se eu fosse árvore entre as árvores, gato entre os animais, esta vida teria sentido, ou melhor, não teria esse problema pois eu faria parte desse mundo.
Albert Camus, in O Mito de Sísifo
O conflito entre Israel e o Hamas atingiu um ponto trágico, com bombardeios aéreos e incursões terrestres que resultaram em milhares de mortes de civis. Esta escalada violenta trouxe devastação sem precedentes para Gaza, que já enfrenta uma crise humanitária. O absurdo deste conflito está na perda massiva de vidas inocentes e na contínua luta pelo poder numa região onde o sofrimento humano parece não ter fim, ressaltando a futilidade de tentar encontrar um sentido diante de uma violência tão desproporcional e aparentemente interminável.
Perante esse alastramento de conflitos e de tragédias, ocorre-me uma citação de Albert Camus, no Mito de Sísifo, que reflete sobre a condição humana e o sentimento de absurdo. Quando ele diz: “se eu fosse árvore entre as árvores, gato entre os animais, esta vida teria sentido”, o escritor francês explora a ideia de que os seres não humanos não têm a capacidade de refletir sobre o sentido da vida ou a sua própria existência. Para uma árvore ou um gato, a existência é simples e natural, sem a carga do questionamento existencial.
A frase “ou melhor, não teria esse problema” sugere que o problema do sentido da vida surge precisamente da consciência humana.
Camus acredita que os humanos, ao contrário dos animais e plantas, são dotados de uma consciência que os leva a questionar o sentido da sua existência. Para uma árvore ou um gato, o mundo é suficiente por si só, sem necessidade de questionamentos. Mas, para o ser humano, essa busca por significado muitas vezes se torna um fardo, gerando o sentimento de absurdo — a disparidade entre o nosso desejo por sentido e a aparente indiferença do universo.
Camus diz-nos que, se fôssemos como os outros seres da natureza, não estaríamos presos à angústia existencial. Contudo, como seres conscientes, somos forçados a lidar com o “problema” de dar sentido à vida neste universo que não oferece respostas claras.
Poderemos ignorar o sentido da vida, mas não podemos deixar de dar sentido à nossa própria vida. É fundamental parar! É absolutamente urgente desligarmo-nos e viajar pelo nosso interior em busca da nossa mais profunda essência. Há um mundo ainda por descobrir e por explorar, neste mundo de excessos e de dependências.
Há um estado de espírito que muitas vezes me invade, diante de tantas tragédias e catástrofes, esse “vague à l’âme“, expressão francesa que pode ser traduzida para o português como “vago na alma” ou “vaga na alma”. É um sentimento de melancolia, de nostalgia ou uma sensação indefinida de tristeza e descontentamento. Muitas vezes, está associada a um estado de espírito contemplativo, onde a pessoa se sente um pouco perdida ou desconectada emocionalmente. É uma sensação que pode surgir sem uma razão aparente, provocando uma reflexão sobre a vida e as suas complexidades.
As emoções melancólicas podem ter um impacto profundo na criatividade artística, influenciando tanto o processo criativo quanto o resultado final das obras. Aqui estão manifestações artísticas dessa relação:
1. Profundidade Emocional: a melancolia pode levar os artistas a explorar temas mais profundos e complexos, como a perda, a solidão e a nostalgia. Isso pode resultar em obras que ressoam emocionalmente com o público.
2. Reflexão e Introspeção: momentos de tristeza ou melancolia frequentemente incentivam a reflexão interna. Os artistas podem usar essa introspeção para explorar as suas próprias experiências e sentimentos, traduzindo isso na sua arte.
3. Estímulo da Imaginação: a melancolia pode ativar a imaginação, levando os artistas a criar mundos e narrativas que refletem os seus estados emocionais. Isso pode resultar em obras mais inovadoras e originais.
4. Expressão de Conflitos Internos: as emoções melancólicas muitas vezes são complexas e contraditórias. Os artistas podem usar a sua arte para expressar esses conflitos, criando peças que capturam a dualidade da experiência humana.
5. Conexão com o Público: a melancolia é uma emoção universal que muitas pessoas podem vivenciar. Artistas que abordam esses sentimentos na suas obras podem criar uma conexão mais forte com o seu público, dando origem a uma maior empatia e compreensão.
6. Libertação Emocional: para muitos artistas, a criação é uma forma de lidar com as suas emoções. A expressão artística pode servir como uma forma de catarse, permitindo que os artistas processem e liberem a tristeza.
7. Estilo e Estética: a melancolia pode influenciar as escolhas estéticas, como paletas de cores, temas e formas. Os artistas podem optar por estilos que refletem ou amplificam as suas emoções, criando uma atmosfera que espelhe a melancolia.
As emoções melancólicas podem atuar como um catalisador poderoso para a criatividade, levando os artistas a explorar novas dimensões das suas experiências e a criar obras que tocam as emoções do público.
Várias obras de arte, literatura e música, ao longo da história, abordam temas melancólicos, refletindo a complexidade das emoções humanas. Aqui estão apenas algumas das mais famosas, que muito recomendo:
Na Literatura:
1. “A Metamorfose” de Franz Kafka: esta novela explora a alienação e a desumanização, retratando a vida do caixeiro viajante, Gregor Samsa, depois de se transformar num inseto.
2. “Os Sofrimentos do Jovem Werther” de Johann Wolfgang von Goethe: um romance epistolar que narra a paixão não correspondida e a angústia emocional do protagonista, Werther.
3. “A Montanha Mágica” de Thomas Mann: uma obra que explora a vida e a morte num sanatório, abordando temas de reflexão e a passagem do tempo.
Nas Artes Visuais:
1. “O Grito” de Edvard Munch: Esta icónica pintura expressa angústia e desespero, capturando uma sensação profunda de melancolia.
2. “A Noite Estrelada” de Vincent van Gogh: embora seja uma obra vibrante, muitos interpretam a pintura como uma expressão da luta interna de Van Gogh e a sua própria melancolia.
3. “O Triunfo da Morte” de Pieter Bruegel, o Velho – Uma visão apocalíptica do caos e da morte, retratando a impotência humana frente ao desastre e à inevitabilidade do sofrimento
Na Música:
1. “Adagio for Strings” de Samuel Barber: uma composição magnífica e arrepiante que evoca uma profunda sensação de tristeza e reflexão.
2. “Creep” do Radiohead: a letra da canção expressa sentimentos de inadequação e desespero, ressoando nos seus muitos ouvintes.
3. “Nightswimming” do R.E.M.: uma canção que evoca nostalgia e melancolia, refletindo sobre o tempo e as memórias.
No Cinema:
1. “A Estrada” (The Road): um filme que aborda a desolação e a luta pela sobrevivência num mundo pós-apocalíptico, carregando um tom melancólico.
2. “Cidades de Papel” (Paper Towns): uma história sobre busca e perda, que explora a melancolia da adolescência e a busca por identidade.
3. “Melancolia” de Lars von Trier: o filme lida explicitamente com a depressão e a melancolia, usando a metáfora de um planeta colidindo com a Terra.
Todos os exemplos e temas apresentados — o conflito entre Israel e Hamas, as crises humanitárias em Mianmar e Sudão do Sul, a guerra na Ucrânia e até mesmo a dependência digital — ilustram uma mesma tensão existencial. No âmago dessas situações, vemos o conflito entre o desejo humano de ordem, sentido e pertença e a indiferença do universo diante desse anseio, exatamente como Albert Camus descreve em O Mito de Sísifo.
Camus aponta para o fardo de sermos conscientes e, por isso, obrigados a lidar com questões de significado no meio de uma existência absurda, onde a vida pode ser brutal e imprevisível. As tragédias e as guerras, onde a violência aparentemente não tem fim e o sofrimento humano é extremo, reforçam esse sentimento.
Esses eventos mostram como a condição humana, tão diferente da de uma “árvore entre as árvores”, é marcada pela constante luta contra o absurdo e pela tentativa, muitas vezes inútil, de fazer sentido num mundo que parece não oferecer respostas claras.
Professor, Poeta e Formador