
Há uma diferença subtil, mas profunda, entre viver e sobreviver. Esta distinção ecoa nas palavras de Rita Levi-Montalcini, essa cientista italiana cuja sabedoria atravessou laboratórios e fronteiras: “dai sobretudo vida aos vossos dias do que dias à vossa vida”. Uma frase simples, quase minimalista, mas que carrega em si toda a filosofia de uma existência plena. Não se trata apenas de acumular tempo, mas de preencher cada instante com significado, beleza e profundidade — algo que Edgar Morin, no alto dos seus 103 anos, tão bem soube interpretar ao longo da sua trajetória como observador atento das transformações humanas.
Viver, verdadeiramente viver, é um exercício de atenção. É estar presente no aqui e agora, como nos ensinam os mestres budistas. “Não há caminho para a felicidade; a felicidade é o caminho”, dizia Buda. E neste caminho, não estamos condenados a uma corrida desenfreada rumo a metas distantes, mas antes chamados a descobrir a poesia escondida nos gestos quotidianos. Um raio de sol trespassando a janela, o aroma de um café acabado de coar, o sorriso fugaz de um desconhecido — são estes pequenos detalhes que tecem a trama da vida. São eles que nos salvam da banalidade e nos elevam à condição de seres conscientes e gratos.
Montaigne, esse grande pensador renascentista, também nos alertava para a importância de viver com autenticidade. “A vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”, escreveu ele, lembrando-nos que o ato de viver não pode ser mecânico ou superficial. Devemos questionar, explorar, mergulhar nas profundezas do nosso ser. Para Montaigne, o essencial era encontrar equilíbrio entre o mundo exterior e o interior, entre aquilo que somos e aquilo que projetamos. Ele próprio, refugiado na sua torre de meditação, cultivava a arte de viver com simplicidade e sabedoria, valorizando mais as pequenas alegrias do que os grandes feitos.
Espinosa, por seu lado, oferece-nos uma perspetiva ainda mais ampla. Para ele, a liberdade reside na capacidade de compreendermos a nossa conexão com o todo. “O homem livre nada teme e menos ainda a morte”, afirmava o filósofo holandês. Ao percebermos que somos parte integrante de um universo interligado, deixamos de nos preocupar excessivamente com o futuro ou de lamentarmos o passado. A vida torna-se então um fluxo contínuo, onde cada momento é sagrado porque está imerso na eternidade da natureza.
Esta forma de olhar o mundo — esta postura de saborear a poesia da vida — foi particularmente clara para mim numa noite especial, dia 26 de abril, quando tivemos o privilégio de assistir a um concerto de Ana Laíns e os seus maravilhosos músicos e amigos, acompanhada pela Banda Filarmónica de Ílhavo, na Casa da Cultura de Ílhavo, celebrando os 125 anos daquela instituição centenária. Ali, senti-me transportado para um estado de espírito único, onde o tempo parecia suspenso e cada nota musical vibrava como uma lembrança viva da nossa cultura e identidade portuguesas.
Ana Laíns, com a sua voz poderosa e envolvente, interpretou canções de grandes nomes que marcaram a revolução e a história da nossa língua. Cada palavra cantada parecia+ evocar memórias coletivas, histórias de luta, de esperança e de liberdade. Era impossível não sentir um arrepio percorrer o corpo ao ouvir aquelas melodias que falam do nosso ser português, desse estado de espírito que transcende geografias e gerações. Ser português, percebi nesse momento, é muito mais do que ter nascido num determinado lugar ou falar uma língua específica. É abraçar uma herança de coragem, de sonhos e de resistência. É saber que, mesmo nas adversidades, existe sempre uma chama acesa dentro de nós, pronta para iluminar o caminho.
Enquanto a música enchia o espaço, senti-me invadido por uma mistura de emoções: alegria, nostalgia, orgulho, gratidão. A banda filarmónica, com a sua energia vibrante, elevava cada canção a um nível quase transcendental. Havia algo de mágico naquele encontro entre vozes, instrumentos e pessoas. Era como se todos ali, independentemente das suas origens ou percursos, estivessem unidos por um propósito maior: celebrar a vida, a cultura e a liberdade.
Nessa noite, recordei as palavras de Ludwig van Beethoven, esse gigante da música que, mesmo enfrentando a surdez, continuou a criar obras imortais. Ele disse certa vez: “A alegria é a força vital de todas as criaturas. É a pérola que adorna a coroa da alma.” Que lição poderosa! A alegria, essa força primordial, não é um mero estado de espírito passageiro, mas a essência mesma da vida. É ela que nos impulsiona a transcender os limites, a ver além das aparências e a celebrar a existência em toda a sua magnificência.
Por vezes, penso que a vida é como uma sinfonia. Não são as notas isoladas que importam, mas sim a harmonia que elas criam quando tocadas em conjunto. Cada dia é uma nota, cada experiência é um acorde. E nós, enquanto intérpretes, temos o poder de escolher como vamos tocar essa melodia. Podemos optar pela monotonia de uma única nota repetida até ao infinito ou podemos ousar criar algo novo, vibrante, único. Beethoven ensina-nos que a verdadeira alegria não reside na ausência de dor ou dificuldade, mas na capacidade de transformar essas adversidades em beleza sonora, em poesia.
Assim, inspiro-me em Montaigne para refletir sobre o sentido da minha existência, em Espinosa para compreender a minha relação com o cosmos e nos ensinamentos budistas para praticar a presença e a gratidão. E assim caminho, tentando dar vida aos meus dias, saboreando cada instante como se fosse o último, mas também como se fosse o primeiro. Porque, afinal, viver não é apenas respirar. É sentir, pensar, amar, criar. É, como diria Morin, encontrar a poesia que habita em cada canto deste mundo imperfeito, mas maravilhoso.
No final, talvez seja isso que realmente importa: não quantos anos vivemos, mas como os vivemos. A vida, como uma obra-prima musical, pede que sejamos tanto maestros quanto instrumentistas — que saibamos conduzir o ritmo, mas também que estejamos dispostos a improvisar quando necessário. E, ao fazê-lo, descobrimos que a alegria não é algo que se alcança, mas algo que se cultiva, como um jardim secreto dentro de nós mesmos. Assim como aquele concerto em Ílhavo, onde a música e a alma portuguesa se fundiram numa celebração da liberdade e da esperança, recordo que cada momento vivido com consciência e entrega é, em si, uma forma de eternidade.
Bem hajas, Ana Laíns, por me transportares para os interiores poéticos que alegremente busco nos meus dias!

Professor, Poeta e Formador