Muito se tem dito acerca das alterações recentes aos estatutos das ordens profissionais.
Estas alterações, transversais a todas, são fruto, não de uma necessidade real, mas de uma imposição europeia.
Mas antes de entrarmos mais a fundo no tema, vamos, em primeiro lugar, perceber o porquê da necessidade da existência de ordens profissionais.
A explicação é bastante simples: há profissões que, pela sua própria natureza, especialidade, relevância e seriedade / gravidade dos seus âmbitos, requerem regulamentação própria. E aí entram as ordens profissionais com o seu poder de regular quem pode ou não aceder à profissão; acedendo, em que condições e, no seu exercício, regulando a disciplina da responsabilidade em caso de falha.
É uma questão de interesse público e, como tal, tais entidades veem-se reguladas por imperativo legal.
No que à Ordem dos Advogados Portugueses diz respeito, o ato próprio de advogado estava, até recentemente, regulado pela Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, que foi revogada pela Lei n.º 10/2024 de 19 de janeiro.
O que dizer deste novo enquadramento legal?
Duas coisas ficam certas e dizemos sem medo de errar: os atos próprios de advogado foram vendidos e o interesse público saiu prejudicado.
As alterações feitas aos estatutos das ordens profissionais em geral e aos da Ordem dos Advogados Portugueses em particular, foi encomendada e paga pela União Europeia. Aliás, basta vermos como o atual quadro se foi desenhando já lá atrás na Diretiva (UE) 2018/958 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 28 de junho de 2018.
A ingerência já é antiga. Começou subtil, com ar de quem não quer nada, mas como se vê, querendo tudo.
Muito embora se louve a voz discordante e que se recusa a calar da Senhora Bastonária da Ordem dos Advogados, verdade é que o mal já está consumado.
No contexto da nova lei, são atos próprios de advogado: o mandato forense, ou seja, o mandato que habilita o advogado a representar o seu cliente em tribunal, os atos que resultem do exercício do direito dos cidadãos de se fazer acompanhar por advogado perante qualquer autoridade e, por último, aqueles em que o arguido deva ser assistido por defensor, nos termos da lei processual penal.
Deixam de ser atos próprios de advogado: a consulta jurídica; a elaboração de contratos e a prática dos atos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais; a negociação tendente à cobrança de créditos e o exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de atos administrativos ou tributários.
Nestes casos, a competência dos advogados é concorrente com a de outros profissionais: uns também ligados às profissões jurídicas como é o caso dos solicitadores e agentes de execução e outros sem qualquer ligação à área do direito.
Que não haja ilusões: esta alteração é perniciosa, para dizer o mínimo.
Não que seja prejudicial aos advogados: em abono da verdade não são os advogados que vão sair prejudicados no meio deste novo “status quo”, mas, sim o cidadão.
A ausência de preparação em matérias de direito por parte de alguns (não todos) os que agora saem autorizados a praticar os atos que até há bem pouco tempo eram para ser praticados exclusivamente por profissões jurídicas, leva a uma tal leveza que bem se prevê um aumento da litigância e, consequentemente, mais trabalho para os advogados.
Se até aqui, o recurso à chamada advocacia preventiva era fundamental para quem prefere conduzir-se evitando problemas futuros, dizemos agora que aquela nunca foi tão imprescindível como agora.
A leveza e a irresponsabilidade com que alguns, não vinculados a ordens profissionais (e, portanto, sem controlo), vão poder praticar a consulta jurídica e/ou a elaboração de contratos e/ou preparação de negócios jurídicos vai, sem dúvida, levar a um sério aumento da litigância.
Já para não falar de questões que se prendem com o sigilo profissional que leva, neste novo quadro legal, um forte rombo.
Por último, uma nota para sublinhar a leviandade do legislador que faz cair o crime de procuradoria ilícita. Desde janeiro deste ano que todo aquele que pratique atos próprios de advogado não o sendo, deixa de ser punido criminalmente. Há sanções previstas na nova lei? Há, mas são manifestamente insuficientes.
Por agora deixamos aqui este apontamento introdutório na certeza de que nos próximos escritos iremos, ponto por ponto e de forma detalhada descrever a maliciosidade deste novo quadro legal.
E assim vamos nesta insustentável leveza do não ser advogado!
Advogada/Mestre em Direito