É lenda instalada que Vincent Van Gogh não vendeu um único quadro em vida depois de prolífica produção pictórica.
Não é verdade e a curiosidade reside no facto de a primeira compradora de um quadro de Van Gogh, ainda em vida deste, ter sido uma mulher de bom gosto, com ‘faro’ apurado e ‘bom olho’, com espírito de coleccionadora de obras de arte da sua contemporaneidade e com muito desafogo económico para o fazer.
E que era também pintora, mas uma pintora de muito sucesso, que vendia bem as suas obras e estava na vanguarda do Neo-impressionismo com marca própria.
Refiro-me a Anna Boch, pintora belga, cujo percurso tem aspectos semelhantes ao da “nossa” Aurélia de Sousa que nasceu cerca de 18 anos depois. Ambas pertenciam a uma família da alta burguesia, ambas cedo afirmaram a vontade de se profissionalizarem como artistas sem recuar perante as dificuldades de ser aceites como iguais num patamar reservado a homens, ambas abdicaram de casar e de ter filhos para melhor garantirem a consecução dos seus objectivos profissionais, ambas concretizaram o seu gosto pelas viagens ao estrangeiro e ambas gozaram de disponilidade financeira para se formarem solidamente como pintoras e se manterem como profissionais.
Van Gogh e Eugène Boch, irmão mais novo de Anna e também pintor, tornaram-se amigos em 1888, o ano em que Vincent fez o retrato de Eugène, que o conservou na sua posse enquanto foi vivo, e pintou também a maravilhosa “Vinha Vermelha em Montmajour” (agora no Museu Pouchkine).
E foi precisamente esta Vinha Vermelha que Anna Boch comprou em 1889, por 400 francos. Fazia parte de um pequeno lote de telas que Octave Maus, primo de Anna e de Eugène, tinha selecionado com vista a ser mostrado numa exposição do grupo dos Vinte (Les XX), do qual Anna fazia parte. O lote acabou por não ser aceite e não ser exposto porque algumas telas com os (hoje famosos) girassóis pintados por Vincent foram consideradas, na altura e no mínimo, ‘inenarráveis’.
Mas isso não dissuadiu Anna Boch de comprar e juntar a tela escolhida à sua colecção. Vincent considerou baixo o preço proposto, mas conformou-se. Ambos tinham razão.
Pouco depois da morte de Van Gogh (1891), Anna Boch comprou outra tela de Van Gogh: a belíssima “Planície de La Crau com Pessegueiros em Flor” (1889), por 350 francos. Vendeu as duas obras em 1907 por 10 mil francos, com um lucro muito considerável, consequentemente. Mas errou ao não esperar mais anos para o fazer, já que teve uma vida longa. Se o tivesse feito, esse lucro teria sido incalculavelmente maior.
Esta curta evocação da relação entre os irmãos Boch e Van Gogh serve para desfazer a lenda e para lembrar o revolucionário efeito do tempo nas mutações do gosto e da fortuna em matéria de arte. Van Gogh morreu na pobreza, incompreendido e inapreciado, salvo por outra artista, reputada e de sucesso, coleccionadora riquíssima, que lhe comprou a única obra que ele terá vendido em vida.
Um século depois, Van Gogh é uma Pop Star da Pintura, com as raras obras idas a leilão a serem transaccionadas por valores astronómicos, como foi o caso dos “inenarráveis“ girassóis. Anna Boch nunca alcançou tamanha fama global e, ao invés, mas sem perder o lugar conquistado na História da Arte, foi entrando progressivamente na sombra da apreciação do público, mesmo na sua Bélgica natal. Eugène Boch, esse, sobrevive sobretudo na memória pública graças ao retrato que Van Gogh pintou e lhe ofereceu e que agora é um dos tesouros do Musée d’Orsay.
Jurista