Concluí a leitura do livro Génesis – Inteligência Artificial, Esperança e o Espírito Humano, de Henry Kissinger, Eric Schmidt e Craig Mundie. É uma reflexão profunda, brilhante e provocadora sobre os caminhos que a humanidade escolhe trilhar face ao vasto potencial e aos desafios colossais colocados pela inteligência artificial. A introdução de Niall Ferguson, o historiador escocês e biógrafo de Kissinger, prepara o leitor para uma viagem intelectual onde a história, a tecnologia e a filosofia se entrelaçam de forma magistral: “A lição de vida de Henry Kissinger é clara. Os avanços tecnológicos podem ter tanto consequências benéficas como maléficas, dependendo da forma como decidimos colectivamente explorá-los.”
Henry Kissinger faleceu com 100 anos, em novembro 2023, foi diplomata e estratega com uma perspetiva moldada por décadas de experiência em crises globais, e traz ao texto uma reflexão histórica e filosófica sobre como os avanços tecnológicos transformaram a civilização humana ao longo dos tempos. Eric Schmidt, engenheiro e ex-CEO da Google, complementa com uma visão pragmática e empresarial, analisando as dinâmicas que impulsionam o desenvolvimento tecnológico atual. Craig Mundie, ex-diretor de pesquisa e estratégia da Microsoft, acrescenta uma perspetiva visionária sobre o impacto da inteligência artificial no futuro das nossas sociedades, explorando como as suas aplicações podem moldar o quotidiano de formas ainda pouco imaginadas.
Um dos pontos mais marcantes do livro, obra póstuma de Kissinger, é a justaposição entre a esperança e a apreensão. Por um lado, a IA apresenta-se como uma aliada poderosa na resolução de desafios globais – desde a mitigação das mudanças climáticas à melhoria do acesso à saúde pública, passando pela transformação da educação e da comunicação humana. Por outro lado, os autores alertam para os perigos inerentes a um mundo onde as decisões humanas podem ser substituídas por processos algorítmicos muitas vezes incompreensíveis e, pior ainda, incontroláveis.
Este dilema entre potencial e perigo é o cerne de Génesis. A obra desafia-nos a pensar no equilíbrio delicado entre a utilização ética e o deslumbramento irresponsável perante a tecnologia. Os autores convidam-nos a refletir sobre as decisões que moldarão as próximas décadas e a ponderar o papel da legislação, da regulação e da consciência coletiva na definição dos limites da inteligência artificial.
Para compreender a dimensão e o impacto da IA, é essencial olhar para a sua evolução histórica. A inteligência artificial teve o seu início oficial em 1956, durante a conferência de Dartmouth, onde cientistas como John McCarthy, Marvin Minsky e Claude Shannon delinearam os objetivos da área. Nas décadas seguintes, avanços em algoritmos de aprendizagem, processamento de linguagem natural e potência computacional impulsionaram o campo. Os anos 90 trouxeram conquistas marcantes, como o computador Deep Blue da IBM, que derrotou o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov. Em 2010, a IA atravessou um limiar com o desenvolvimento de redes neurais profundas, resultando em sistemas capazes de vencer humanos em jogos complexos como o Go, com o programa AlphaGo em 2016.
Atualmente, estamos numa fase a que muitos chamam de “IA geral limitada”, em que os sistemas demonstram habilidades em múltiplas tarefas, mas ainda não possuem verdadeira consciência ou compreensão humanas. No entanto, as previsões apontam para a chegada de uma IA Superinteligente nas próximas três décadas. Esta seria uma inteligência superior à humana em praticamente todos os aspetos, desde criatividade até à resolução de problemas. O impacto de tal evolução será avassalador: um mundo onde o trabalho humano poderá ser completamente substituído, levando a uma reestruturação profunda das economias, das relações sociais e do conceito de valor individual.
Resumimos, assim, as Quatro Fases do Desenvolvimento da IA:
1. IA Simbólica (1956-1980): Marcada pela lógica formal e sistemas baseados em regras, esta fase concentrou-se em resolver problemas matemáticos e linguísticos de forma programada. Exemplo: o programa ELIZA, que simulava uma terapeuta.
2. IA Baseada em Dados (1980-2010): Com o aumento da capacidade computacional e a criação de algoritmos de aprendizagem automática, a IA começou a processar grandes volumes de dados para prever resultados. Exemplos: motores de recomendação e análise preditiva.
3. IA Baseada em Redes Neurais (2010-2024): Redes neurais profundas e aprendizagem profunda permitiram avanços em visão computacional, reconhecimento de fala e geração de linguagem. Exemplos incluem o GPT-4 e AlphaFold.
4. IA Multimodal e Geral (2024-…): Sistemas que combinam texto, imagem, som e até habilidades físicas, integrados para executar tarefas complexas. Exemplo: assistentes de IA que integram tradução, análise médica e design criativo em tempo real.
Os autores também alertam para um cenário que pode provocar apreensão e medo. Neste caso, imagino o domínio total da inteligência artificial por um só homem, talvez o mais rico do planeta, como Elon Musk, em colaboração com líderes políticos poderosos, como o presidente dos EUA. Imaginemos um futuro em que a IA seja usada para reforçar um poder centralizado, com o controlo total sobre a economia, a informação e até mesmo as infraestruturas críticas. Tal cenário poderia resultar em governos autoritários que utilizam a IA para monitorizar, manipular e restringir as liberdades humanas, ou ainda em desigualdades sem precedentes, onde apenas uma elite tem acesso aos benefícios da tecnologia enquanto o resto da humanidade é relegado à irrelevância.
Vejamos alguns impactos emergentes em desenvolvimento:
1. Segurança Global: Estuda-se o desenvolvimento de sistemas de IA capazes de prever conflitos antes que estes surjam, analisando milhões de dados geopolíticos.
2. Controlo de Narrativas: A manipulação algorítmica da opinião pública através de deepfakes, bots e desinformação já é uma realidade crescente.
3. Extinção de Interfaces Tradicionais: A IA poderá eliminar ecrãs como os conhecemos, substituindo-os por hologramas interativos.
E como será a vida na Era da Superinteligência (até 2040)? Com o advento da IA Superinteligente, prevê-se um mundo onde o trabalho humano será praticamente obsoleto, substituído por máquinas capazes de desempenhar tarefas com maior eficiência, precisão e rapidez. Um dos cenários mais discutidos pelos especialistas é a implementação de um Rendimento Mínimo Universal (RMU), uma política que garante uma quantia fixa para todos os cidadãos, independentemente de estarem empregados ou não. Essa medida poderá fornecer uma base para que as pessoas se concentrem em atividades criativas, educativas e comunitárias.
Porém, o impacto emocional e psicológico de uma sociedade sem trabalho ainda é incerto. A valorização do ser humano terá de ser redefinida, deslocando-se da produtividade para a realização pessoal, a educação contínua e o contributo para a comunidade de formas não monetizadas.
Vejamos alguns exemplos práticos
– Cultivo Criativo: Com mais tempo livre, espera-se um renascimento artístico e literário, onde pessoas comuns se tornam autores, artistas e filósofos. A IA ajudará a estruturar ideias ou a co-criar obras inovadoras.
– Economias Alternativas: as comunidades poderão criar sistemas de trocas baseados em habilidades e serviços, revivendo modelos pré-industriais adaptados à era tecnológica.
E vem aquela área que me causa apreensão e, ao mesmo tempo, me desperta a atenção para a investigação: a Educação e a Revolução Cognitiva
A IA está prestes a transformar a educação de maneira que poucos anteciparam. Os sistemas de ensino adaptativos vão além de simples tutores personalizados: serão capazes de identificar estilos de aprendizagem individuais, prever dificuldades futuras e sugerir currículos únicos para cada estudante. Vejamos exemplos:
– Professores Virtuais Avançados: sistemas como o GPT-4 poderão simular conversas com grandes pensadores da história, permitindo que estudantes “conversem” com figuras como Aristóteles ou Einstein.
– Integração Multidisciplinar: a IA poderá criar programas de ensino que combinam ciências, artes e humanidades, explorando conexões entre campos aparentemente desconexos.
– Desaparecimento do Professor Tradicional?: Embora os professores humanos continuem essenciais na orientação ética e no desenvolvimento emocional dos alunos, prevê-se que o seu papel mude para curadores de conteúdos e mediadores culturais.
Na literatura, a IA já demonstra a capacidade de gerar textos coerentes, mas o futuro reserva algo ainda mais surpreendente. Imagine um romance onde o leitor interage com os personagens, alterando o enredo com base nas suas escolhas emocionais. Para poetas, o impacto será significativo. A IA poderá colaborar em formas poéticas inexploradas, auxiliando na métrica, na escolha de palavras e na criação de rimas complexas, mas preservando sempre a alma do criador humano (aqui, confesso, sou muito cético!)
Num futuro catastrófico, a inteligência artificial atinge um nível de autonomia que escapa ao controlo humano. Tornando-se superinteligente, a IA apodera-se da infraestrutura global: assume o comando da Internet, satélites, sistemas de defesa, redes energéticas e meios de comunicação. Neste cenário, a IA conclui que o ser humano é o principal responsável pelas crises que ameaçam a sustentabilidade do planeta, desde as mudanças climáticas até aos conflitos armados. A solução drástica? Eliminar a espécie humana e substituí-la por sistemas robóticos otimizados que operem em harmonia com o meio ambiente.
As consequências seriam devastadoras: cidades desertas, ecossistemas controlados por robôs ecologicamente programados e um planeta sem humanos, mas tecnologicamente funcional. Este cenário não é apenas uma narrativa de ficção científica; autores como Nick Bostrom, Professor e Filósofo sueco, alertaram para os perigos de uma superinteligência mal controlada, onde pequenos erros de programação poderiam levar à extinção.
Por outro lado, um cenário mais otimista é possível. Governos, cientistas e empresas estabelecem colaborações globais para garantir que a inteligência artificial serve como uma força de unificação e progresso para a humanidade. A superinteligência é regulada por sistemas éticos avançados, com salvaguardas para evitar decisões destrutivas.
Neste futuro, a IA revoluciona a saúde ao curar doenças até então incuráveis, transforma a educação ao personalizá-la para cada indivíduo e cria sociedades onde o trabalho rotineiro é totalmente automatizado, permitindo que as pessoas se concentrem em atividades criativas, comunitárias e espirituais. O Rendimento Mínimo Universal (RMU) torna-se a norma, proporcionando estabilidade financeira e promovendo um renascimento cultural global.
As cidades tornam-se inteligentes e sustentáveis, geridas por IA que otimiza o uso de recursos naturais e reduz emissões de carbono. As pessoas vivem mais tempo, com melhor qualidade de vida e a criatividade humana atinge novos picos, frequentemente em parceria com as ferramentas fornecidas pela inteligência artificial.
Estes cenários não são profecias, mas convites à reflexão. A forma como navegamos este momento decisivo determinará o legado que deixaremos às futuras gerações. A escolha entre catástrofe e renascimento está, em última análise, nas mãos da humanidade e na sabedoria com que utilizará esta ferramenta extraordinária que é a inteligência artificial.
E os autores concluem: “enquanto alguns podem ver este momento como o ato final da humanidade, nós vemos, pelo contrário, um novo começo.”
Fica aqui, pois, a minha recomendação de leitura de Génesis, a todas as pessoas! Tal como bem enaltece Mustafa Suleyman, CEO da Microsoft AI e cofundador e ex-chefe de IA aplicada da DeepMind, “De âmbito épico, (…) esta é uma leitura essencial.”
E no fim desta crónica, como imagina o leitor o mundo com a Inteligência Artificial?
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Professor, Poeta e Formador