Descalço os sapatos e retiro as minhas vestes.
Abraço a Terra para impedi-la de girar. Paro o Tempo. Congelo o Mundo. Por ti. Por ti!
Porque a minha caminhada, tudo o que transporto, o solo que piso, a vida que ainda me resta, o fluxo do dia e da noite, nada valem sem o calor da tua voz, a ternura do teu olhar, a tua presença e a tua existência na minha vontade de ser a verdade.
Giro o mundo contigo!
Por ti. Só por ti!
José Paulo Santos

Estar em espaços de multidões permite-nos observar e contemplar os comportamentos humanos. Ali sentado, na esplanada, diante de uma chávena de café, durante o Festival Literário Internacional de Óbidos, o FÓLIO, notei um padrão que se repetia ao meu redor: quase todas as pessoas, sem exceção, estavam absortas nos seus telemóveis. Alguns trocavam mensagens freneticamente, outros rolavam intermináveis feeds de redes sociais, enquanto um grupo menor assistia a vídeos com auscultadores. Ninguém tinha contato visual; alguns grupos e famílias estavam em completo silêncio, exceto pelo som ocasional das notificações (plim!). Era como se cada um estivesse imerso numa bolha digital, alheio à presença das pessoas ao redor.
Essa cena comum, observada tantas vezes em estações, restaurantes e até mesmo em jantares familiares, reflete um aspeto da nossa realidade empírica: uma dependência crescente dos dispositivos digitais. A tecnologia, que prometia conectar-nos, parece ter-nos desconectado do que está imediatamente ao nosso redor. Como descrevem autores como Pascal Chabot, estamos a viver numa era de “digitose”, onde a dependência das plataformas digitais transformou as nossas formas de viver, de pensar e de interagir.
O cenário da esplanada é um microcosmo desta nova realidade: indivíduos fisicamente próximos, mas mentalmente distantes. É como se o tempo e o espaço tivessem sido redefinidos pelos ecrãs, criando um mundo paralelo onde cada pessoa se refugia, fugindo da lentidão das interações reais. Ao observar esse comportamento, surgem reflexões inevitáveis: estamos mais conectados ou mais isolados? Será que trocamos o genuíno pelo superficial, o próximo pelo distante? E, como sugerem cientistas como Daniel J. Levitin e Sherry Turkle, quais são as consequências dessa nova dinâmica para a nossa atenção, empatia e saúde mental?
Essa breve observação quotidiana convida-nos a pensar criticamente sobre o papel dos dispositivos digitais nas nossas vidas. Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de questionar a forma como ela está a moldar a nossa perceção e as nossas interações sociais. Afinal, se cada um de nós é uma ilha digital, como podemos construir pontes de empatia e conexão verdadeiras num mundo que parece estar cada vez mais fragmentado?
O filósofo belga Pascal Chabot, no seu livro “Un sens à la vie, Enquête philosophique sur l’essentiel” (PUF, 2024), refere-se à condição de dependência excessiva da tecnologia digital, especialmente em relação ao uso de dispositivos conectados e plataformas digitais, que ele denomina “patologia típica do mundo digital“, e que possui um neologismo: a “digitose”. Chabot argumenta que a digitalização profunda da sociedade e das interações humanas pode levar a uma série de consequências, tanto positivas quanto negativas.
Do lado positivo, a digitalização pode facilitar o acesso à informação, a comunicação instantânea e a eficiência em diversas tarefas. No entanto, Chabot também alerta para os riscos associados à digitose, como a perda de habilidades sociais, a diminuição da atenção, a superficialidade nas relações interpessoais e a alienação.
Ele sugere que, à medida que as pessoas se tornam mais dependentes das tecnologias digitais, é crucial refletir sobre como essas ferramentas moldam a nossa forma de viver, pensar e interagir. A digitação não deve substituir as experiências humanas autênticas, mas sim ser usada de maneira equilibrada e consciente. A digitose representa um convite à reflexão crítica sobre o papel da tecnologia na vida moderna.
Para aprofundar a reflexão de Pascal Chabot sobre a “digitose” e o impacto das tecnologias digitais, é possível incorporar perspetivas de cientistas contemporâneos, especialmente do campo das neurociências, que têm estudado os efeitos cognitivos e sociais do uso intensivo de tecnologias.
O neurocientista Daniel J. Levitin, no seu livro “A Mente Organizada – Como Pensar Com Clareza Na Era Da Sobrecarga De Informação” (2014), destaca como a sobrecarga de informação digital altera o funcionamento do cérebro, afetando a capacidade de concentração e a memória. Levitin argumenta que a exposição contínua a notificações e atualizações nas redes sociais pode levar a uma diminuição na capacidade de foco e no processamento de informações mais complexas. Essa constante troca de atenção fragmentada é prejudicial, criando um estado de fadiga mental.
Da mesma forma, o neurocientista e psicólogo Daniel Goleman, Daniel Goleman, em Foco – O Motor Oculto da Excelência (2013), afirma que a atenção humana é um recurso limitado que é sobrecarregado pelo excesso de estímulos digitais. Goleman defende que essa “economia da atenção” que as plataformas digitais exploram promove uma superficialidade nas interações e no processamento de informações, resultando numa diminuição da capacidade de empatia e conexão emocional.
Além disso, a pesquisadora Sherry Turkle, em Reclaiming Conversation: The Power of Talk in a Digital Age (2015), observa que, embora as tecnologias digitais possam facilitar a comunicação, elas também reduzem a qualidade e profundidade das interações humanas. Turkle alerta para o facto do uso contínuo de dispositivos digitais poder gerar uma “crise de empatia”, na qual as pessoas preferem interações rápidas e superficiais, perdendo a habilidade de se envolver em conversas significativas e reflexivas.
Esses estudos reforçam a visão de Chabot sobre a “digitose” ao destacar como a dependência de tecnologias digitais pode levar a uma série de mudanças cognitivas e sociais. O uso excessivo de plataformas digitais pode não só alterar a maneira como pensamos e processamos informações, como também afetar profundamente as nossas interações sociais e emocionais. Nesse contexto, o convite de Chabot à reflexão crítica torna-se ainda mais relevante, sugerindo que é necessário adotar uma abordagem equilibrada e consciente no uso das tecnologias, garantindo que elas complementem, em vez de substituir, experiências humanas mais autênticas e profundas.
No seguimento destas reflexões e análises, tivemos a ocasião de assistir a uma conversa entre Leonel Moura e Alexander Gerner sobre o tema “Inteligência Artificial e Criação: Arte?”, no FÓLIO, no passado dia 13 de outubro.
O filósofo e pesquisador Alexander Gerner, investigador do CICANT e Professor na Universidade Lusófona, na experiência humana, destacando como essas ferramentas influenciam a perceção, a atenção e a maneira como nos relacionamos com o mundo e com os outros. Na sua pesquisa, Gerner analisa a forma como a digitalização das interações humanas pode levar a mudanças significativas na maneira como experimentamos o tempo, o espaço e o corpo.
Em estudos como “Philosophical Investigations of Human Enhancement: Technological, Epistemological and Anthropological Aspects” (2017), Gerner examina como a digitalização e o uso constante de dispositivos digitais alteram o estado de consciência dos indivíduos, promovendo uma “interrupção contínua” que afeta a capacidade de concentração e reflexão profunda. Ele sugere que essa constante fragmentação da atenção pode prejudicar não só a produtividade, mas também a qualidade das relações sociais, uma vez que as interações se tornam cada vez mais efêmeras e superficiais.
Outro ponto central no trabalho de Gerner é a noção de “deslocamento digital“, que se refere à maneira como as tecnologias digitais mudam a nossa perceção do espaço e do tempo. Num mundo hiperconectado, há uma sensação de urgência constante, em que as notificações e atualizações exigem atenção imediata, levando a um estado de vigilância permanente. Isso gera um ambiente onde é difícil estabelecer momentos de pausa e contemplação, elementos essenciais para a criatividade e a saúde mental.
Gerner também explora a ideia de que o uso extensivo de tecnologias pode criar uma “redução do campo de experiência”. Ele argumenta que, ao darmos prioridade a interações digitais rápidas e eficientes, acabamos por negligenciar aspetos mais complexos e profundos das experiências humanas. Assim, como Chabot sugere com a “digitose”, Gerner vê um risco na digitalização excessiva: uma perda gradual de competências sociais, de empatia e da capacidade de se envolver em conversas e reflexões mais significativas.
As pesquisas de Alexander Gerner complementam a visão de Chabot ao oferecer uma perspetiva filosófica e neurocientífica sobre os efeitos das tecnologias digitais. Juntos, esses autores, entre outros, destacam a necessidade de uma reflexão crítica sobre como as ferramentas digitais estão a moldar a nossa perceção, cognição e interações sociais. O equilíbrio entre a adoção de novas tecnologias e a preservação de experiências humanas autênticas e profundas é, assim, essencial para evitar os riscos associados à dependência digital.

Professor, Poeta e Formador