A minha rua não tem canteiros de flores, mas tem largas janelas e passeios generosos. É movimentada pela proximidade a vários estabelecimentos de ensino. Os vizinhos cumprimentam-se, mas não param para olhar a vizinha que conta histórias. Sim, na minha rua a vizinha do rés-do-chão vive das narrativas e atenções que os estudantes lhe dedicam.
Ouvem-na nas suas divagações e inquietudes, talvez o alimento que a faz abrir as janelas logo pela manhazinha, na espera dos primeiros passos.
A vizinha do rés-do-chão tem o rosto estampado de amarguras, seco de sorrisos e olhar distante. A solidão habita as paredes da casa e as sombras da ausência dos filhos pairam nas fotografias expostas no móvel central da sala. Naquela mesa moram as saudades deles, que partiram em busca de vida melhor.
Os dias de sol aclaram os seus olhos, sacodem-lhe o corpo do bafio das manhãs cinzentas. Os “seus” estudantes demoram-se com ela no peitoril da janela. Há até alguns que passam mais cedo para um bocadinho de conversa.
Ela conta histórias, nem sempre de encantar, mas as que ainda a habitam num espaço longe. Vindas algumas, em transatlânticos engalanados de juventude. Também as há do dia anterior, repetidas, mas ouvidas com o mesmo olhar de espanto.
Às vezes a narrativa é breve para um público apressado que compreende a necessidade da vizinha da Rua do Futuro. Creio que a empatia que sentem seja também, a forma de colmatar as saudades da mãe.
Contava-lhes como tantas vezes acordava triste pela falta de palavras dos filhos, “nem um telefonema” e descrevia o vazio da casa, a mesa desocupada e como os dias lhe pareciam incompletos, desprovidos de sentido.
O João, rapaz de vivo olhar e sorriso doce era o que mais companhia fazia à vizinha, chegava até a comer a sua sandes ao lado dela encostado ao gradeamento da janela. Ouvia-a com cuidado, seguia os seus olhos e os gestos lentos das suas mãos como se devorasse o que ela dizia. João entremeava a conversa com sorrisos e pedacinhos da sua história.
“Que coincidência”, pensava o rapaz, a história de hoje parecia já a ter ouvido da boca da sua avó. De tantas avós.
E a contadora de histórias da Rua do Futuro, continuava ali à janela quando o sol lhe entrava alma adentro.
Em dias de chuva recolhia-se na sala, de manta pelos ombros e acenava-lhes. Também recolhia as histórias à espera de melhores dias. Sei das amizades que a vizinha do rés-do-chão tem feito ao longo do tempo e como estes jovens a acarinham e entendem. Uma amizade amena que se debruça na compaixão, empatia e respeito. Na partilha de saberes e saudades. Tantas vezes de solidões.
Professora e Escritora