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Segunda-feira, Março 24, 2025

Crónica sobre os sabores da presença – Por José Paulo Santos

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José Paulo Santos
José Paulo Santos
Professor, Poeta e Formador
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Foto de KRISTINA SNOWASP. Direitos Reservados

Num mundo que parece querer explodir de urgência, eu refugio-me nas pequenas maravilhas que transformam a vida em arte. Entre tachos e panelas, salsa, coentros, caril mel e canelas, a cozinha torna-se o meu ateliê, um lugar onde o aroma do refogado dança com a melodia do vento que entra pela janela entreaberta. Que alegria é esta, a de transformar simples ingredientes numa sinfonia de sabores? O dourado da cebola, o vermelho vibrante do tomate que se dissolve em doçura, o perfume quente do alecrim a evocar memórias de campos ensolarados… Tudo aqui é cor e magia, enquanto lá fora, o caos insiste em gritar. Mas eu nada escuto…

Ao preparar pratos, viajo também no tempo e no espaço. É como estar de novo na Tunísia, onde o cheiro do peixe fresco, dos cominhos e do harissa invade as ruas. Ou em Cabo Verde, recordando a cachupa rica, cozinhada lentamente ao som de mornas que embalam a alma. No Brasil, o calor do côco e o óleo de palma nos pratos como a moqueca de peixe misturam-se com o samba que, lá fora, ecoa pelas esquinas. Malta trouxe-me o aroma dos seus pastizzi, os famosos e populares pastéis que podem ser recheados com queijo ricota ou ervilhas, e as águas cristalinas onde o sol parecia temperar os dias. África do Sul revelou o segredo do braai, com carnes marinadas e a promessa de encontros que duram uma eternidade. Moçambique trouxe-me o piripiri e o riso contagiante de quem faz da simplicidade um luxo. Turquia… ah, Turquia! O Grande Bazar de Istambul de especiarias onde me perdi entre açafrão, pistáchios e o doce mel dos baklava. Cada país, uma sinfonia de aromas e sabores que permanece comigo, mesmo na quietude da nossa cozinha.

Enquanto as redes sociais nos acorrentam ao relógio implacável, eu escolho o silêncio da leitura, o abraço das palavras que nunca traem. Prefiro escutar as conversas de amigos, aquelas onde o tempo desaparece e os sorrisos verdadeiros substituem as notificações. Em vez de um “like” apressado, ofereço o calor da minha presença, inteira, verdadeira, sem filtros ou “hashtags”. É como mergulhar num copo de vinho tinto do Alentejo, profundo e intenso, onde o rubi do líquido reflete a intensidade de um momento único, inesquecível. Acompanhado por um queijo francês cremoso ou um “paté de campagne” intenso, cada gole e cada mordida são o preâmbulo de pensamentos que vagueiam, como quem busca poesia nas estrelas ou, simplesmente, ali, ali mesmo, no nosso lar.

Preparar um prato é, para mim, um ato de poesia. Cortar os legumes, sentir a textura da massa, escolher as especiarias certas… Tudo é um ritual. O dourado das especiarias como cúrcuma e açafrão pinta o prato de um sol distante, enquanto o cravo-da-índia e a canela trazem um aroma que embala como um abraço. Ah! o molho inglês, o molho de soja, a mostarda de Dijon! Sentem os sabores e os aromas?! Um prato não é apenas comida; é memória, é emoção, é o carinho transformado em algo tangível. E o melhor tempero, já dizia Alain Ducasse, é o amor: “Cozinhar é um gesto de generosidade, um acto de amor“.

Virginia Woolf, não por acaso, escrevia: “Não se pode pensar bem, amar bem, dormir bem, se não se tiver jantado bem”. Estas palavras fazem-me refletir sobre como a comida é mais do que sustento; é uma ligação ao que nos é mais humano, mais visceral. Ao preparar um caldo quente, o vapor sobe como uma prece silenciosa e o aroma de alho, louro e tomilho invade a casa, envolvendo tudo numa paz inexplicável. A música acompanha os meus rituais: danço na loucura dos 80’s, reflito com o jazz de Miles Davis, Charlie Parker, ou até as notas melancólicas de um violoncelo solitário ou até do único e mágico Chapman Stick de Rodrigo Serrão. Tudo convida ao pensamento e à celebração da vida, rodeado por quem amo.

Lembro-me de Ferran Adrià, o cozinheiro espanhol, dizer que “um prato não é apenas um prato; é uma viagem, uma experiência.” E não é isso mesmo que procuramos quando cozinhamos ou partilhamos uma refeição? Uma experiência que transcende o prato, uma conversa que alimenta tanto quanto a comida, uma memória que permanece muito depois do último pedaço. É como a textura amanteigada de um risotto com vinho branco, com espargos verdes a pontuar o prato como pequenos toques de cogumelos e esperança.

Num mundo que desaba, prefiro erguer pequenas catedrais de prazer. Uma “mousse” de chocolate com raspas de laranja que enchem a casa de perfume cítrico e doce, um risotto cremoso que acolhe como um abraço, um copo de vinho partilhado numa mesa onde o riso é o prato principal. Porque, inspirando-nos num velho ditado, diríamos: “Diz-me o que comes, e eu dir-te-ei quem és.” E eu sou, sem dúvida, alguém que encontra o significado da vida nos pequenos gestos: escolher o arroz certo para o meu prato, mexer um molho até à perfeição, esperar o ponto exato para os ovos moles das minhas natas do céu, dourados como um pôr do sol numa tarde tranquila.

E é tudo uma questão de escolha. Escolho a beleza das coisas simples. Escolho o otimismo de quem acredita que uma refeição bem preparada é uma declaração de amor à vida. Escolho escutar Sophia de Mello Breyner Andresen, que nos ensinou a ver a poesia nas coisas mais quotidianas: “Cada dia claro me apazigua / Cada coisa à sua maneira.”

Assim, entre uma tigela intensa de sopa fumegante e o aroma do café acabado de fazer, descubro que a cozinha é muito mais do que um lugar. É uma ponte entre o caos e a calma, entre o efémero e o eterno. Cada prato carrega em si a possibilidade de um mundo melhor, ainda que seja apenas por instantes.

E tu, o que escolhes?

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